Scretário-executivo do Ministério da Cultura (MinC), Márcio Tavares, historiador, curador de arte e gestor cultural, tornou-se, nos últimos dois anos e meio, o principal interlocutor do governo para uma pauta sensível: a regulação dos serviços de vídeo sob demanda (VoD) atuantes no País.

Embora as plataformas sejam hoje o ambiente por onde mais circulam obras audiovisuais, elas ainda não foram integradas ao arcabouço legal brasileiro. Por isso, ao contrário do que acontece, por exemplo, com distribuidoras estrangeiras de filmes e operadoras de telefonia, elas não recolhem a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine).

A forma de cobrança desse tributo é um dos focos de desavença do projeto de regulação que o governo pretende colocar em votação este mês e sobre isso ­Tavares conversou com CartaCapital em duas ocasiões: no encontro Cultura e Criatividade: Impulsionando o Desenvolvimento Ibero-Americano, realizado no Itaú Cultural, em São Paulo, e no Rio2C, evento de criatividade sediado na Praça das Artes, no Rio.

CartaCapital: Você falou aqui sobre o novo substitutivo que governo apoia. Você pode explicá-lo?
Márcio Tavares: O governo vinha construindo um substitutivo aos dois projetos em tramitação: um no Senado, relatado pelo senador Eduardo Gomes ­(PL–TO), e outro, na Câmara, com relatoria do deputado André Figueiredo (PDT–CE). Há algumas semanas, a deputada Jandira ­Feghali (PCdoB–RJ), após escutar o ministério, apresentou um relatório que representa, em grande parte, nossas posições. Agora faremos um esforço político para que o texto vá a plenário em condições de ser apreciado e aprovado.

“O nosso Congresso é extremamente refratário a qualquer pauta que envolva os meios digitais”, observa Márcio Tavares

CC: É concreta a possibilidade de votação em breve?
MT: O senador Randolfe Rodrigues (PT–AP) tem trabalhado com os presidentes das Casas para viabilizar a votação na Câmara ainda este mês. A ministra ­Margareth Menezes também lidera esse processo. Queremos que a votação aconteça neste semestre, para que, no segundo, o projeto seja aprovado no Senado. A fricção política é constante no País, mas este é um ano mais favorável para avançar nessa pauta.

CC: O que prevê o substitutivo?
MT: Ele prevê cota de obras brasileiras nos catálogos das plataformas em proporção adequada e uma Condecine que garante a sustentabilidade do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA); assegura o conceito de produtora brasileira independente; e garante a propriedade intelectual aos produtores brasileiros. Diante das condições políticas concretas, esse texto nos parece um acordo possível, que atende à maior parte das reivindicações do setor audiovisual, especialmente o independente. O projeto traz ainda uma regra que prevê que as plataformas reinvistam parte dos recursos pagos em forma de Condecine em licenciamento e pré-licenciamento de obras brasileiras, sobretudo as independentes.

CC: Quais são o porcentual da cota e o valor da Condecine?
MT: A cota prevê um mínimo de 10% de obras brasileiras nos catálogos, além da proeminência de tela, que significa a presença delas nas páginas de recomendações. A Condecine é de 6% sobre o faturamento bruto das plataformas.

CC: Como funciona o reinvestimento?
MT: Do total recolhido de Condecine, a previsão é de que 40% vá para o FSA e 60% possa ser reinvestido pelas plataformas em forma de licenciamento e pré-licenciamento de obras brasileiras.

Nacionalidade. Sintonia (à esq.) é um original Netflix. O governo quer garantir que empresas brasileiras detenham os direitos patrimoniais sobre as obras – Imagem: Helena Yoshioka/Netflix

CC: Isso significa que as plataformas poderão usar parte do tributo devido para comprar os direitos de exibição dessas obras por determinado período?
MT: Exatamente. A partir do momento que elas compram, negociam cláusulas como em qualquer contrato de licenciamento. Nosso propósito é manter a propriedade intelectual das obras feitas com recursos públicos com empresas brasileiras.

CC: Em outros projetos, previa-se a possibilidade de parte do tributo ser usada em coproduções.
MT: Há quem defenda esse formato, e ele está colocado, desde que o modelo garanta que o produtor majoritário seja brasileiro. Mas, em princípio, nos parece que o modelo de licenciamento preserva mais a possibilidade de nossos produtores e empresas garantirem o retorno da sua produção, até porque, vencido o prazo do licenciamento, a obra pode ser renegociada com outro player. O que a gente refuta é o uso do reinvestimento em obras que tenham a propriedade intelectual estrangeira.

CC: Em originais das plataformas.
MT: Sim, não se pode financiar uma obra estrangeira com dinheiro público.

CC: A Netflix, este ano, manifestou-se a favor da regulação. Como o governo tem percebido a reação geral das grandes plataformas ao substitutivo?
MT: Esse projeto não atende aquilo que as plataformas consideram como a regulação ideal ou desejada. O descontentamento passa, sobretudo, pela modalidade de investimento e reinvestimento.

CC: Ele também não é o que parte da produção independente considera ideal.
MT: Sim, há propostas ainda mais ousadas circulando, mas elas tornariam um acordo de tramitação muito mais complexo.

“Associar o aumento nos preços das assinaturas às posições do governo é terrorismo econômico”

CC: Além de defender uma ­Condecine de 12%, algumas entidades ligadas à produção independente se queixaram de não terem sido ouvidas por você.
MT: Nossa posição é buscar a mediação, atendendo de forma privilegiada aos interesses da indústria brasileira. Estou sempre aberto a dialogar e já conversei com quase todas as entidades. Mas a gestão do audiovisual tem um número grande de associações. Quando me pedem diretamente uma agenda, busco atender, dentro das minhas possibilidades. Quanto ao porcentual, temos sido coerentes na proposta, até porque, na negociação de um projeto dessa envergadura, para ser um interlocutor confiável, você não pode mudar de posição todo dia, toda hora. É óbvio que respeitamos as demandas por 12%, mas há muito tempo a gente vem trabalhando um texto que traz os 6% de Condecine, algo que, como já disse, não é simples de se conseguir.

CC: Numa entrevista a CartaCapital em fevereiro, você, a Secretaria do Audiovisual e a ministra lamentavam o fato de o cinema brasileiro apresentar-se de forma dividida. Isso mudou?
MT: Não. O setor não tem se apresentado de forma uníssona, e isso não ajuda na tramitação. Acho fundamental que o setor tenha confiança no esforço do governo para a aprovação de uma regulamentação que seja favorável à indústria brasileira e à produção independente brasileira. Parece-me que sem uma unidade das entidades e dos artistas, dos formadores de opinião, não vamos conseguir aprovar esse texto, robusto, tal e qual foi apresentado.

CC: A oposição vem mais das plataformas ou dos congressistas?
MT: Nosso Congresso é refratário a qualquer pauta que envolva os meios digitais. A gente conseguiu, na Cultura, desde 2023, aprovar várias leis específicas para o audiovisual, mas nenhuma delas atingia as grandes corporações internacionais.

CC: A regulação do streaming é impactada por outras discussões sobre o ecossistema digital? O YouTube mesmo é streaming…
MT: Sem dúvida. Mesmo que cada projeto tenha uma especificidade, todos afetam os interesses de grandes corporações – e cada uma tem um comportamento e uma atuação política. Concordo quando você diz que parte desse setor está ­convencida de que precisa ser regulado. Agora, tem outra parte que não parece estar e que é alcançada pela regulação. Todas essas matérias – regulação das redes, direito autoral, inteligência artificial, streaming – são essenciais para o futuro do País, mas têm dificuldade para avançar no Congresso.

CC: Você acha que alguns setores podem entender que esse projeto abre uma brecha para que outras atividades das big techs sejam reguladas?
MT: Não tinha pensado por essa ótica, mas acho que é uma argumentação válida. O que sei é que os setores de oposição ao governo têm buscado, através da desinformação, gerar um clima de pânico.

CC: Fala-se o quê?
MT: Eles associam o valor das assinaturas ao porcentual de Condecine a ser aplicado. Mas a Condecine é uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que não tem nada a ver com o processo da assinatura. Até há, no mundo, regulações que se baseiam no volume de assinaturas, mas a nossa não é assim. Associar o aumento nos preços das assinaturas dos serviços de VoD às posições do governo é terrorismo econômico.

CC: Vocês se inspiraram em regulações de outros países?
MT: Nossa regulação do VoD vai ser única porque ela tem de se inserir em um ecossistema bem formatado, e muito particular – justamente pela natureza da Condecine. Mas vou dar alguns exemplos. A Coreia do Sul exige um reinvestimento de 3% do faturamento em obras sul-coreanas. A França tem um porcentual de 20% a 25%, mas é sobre a receita parcial, ou seja, descontados todos os impostos, e tem cota para produções europeias. Na Espanha, o reinvestimento não tem exigência de propriedade, só de língua.

CC: Você chegou a ser citado como defensor das big techs. De onde acha que vem essa percepção?
MT: De onde vem, não sei. Mas sei que sou um nacionalista de esquerda, comprometido com a indústria nacional, e sou uma pessoa do diálogo – não vou deixar de conversar com ninguém, porque esse é um exercício que meu cargo exige. Só tenho a lamentar que sejam passadas para a imprensa versões que têm o objetivo não de contribuir para o debate, mas de destruir personalidades.

CC: No Rio2C, você esteve numa mesa sobre a criação de uma Film ­Commission federal – ação para atrair produções estrangeiras e filmagens para o País. Isso fez parte das estratégias de negociação da regulação do VoD?
MT: Não, são coisas muito separadas. Uma coisa é enfrentar a dimensão regulatória. Outra é trabalhar essa dimensão da atração de investimentos estrangeiros, fortalecimento das coproduções internacionais e melhor na infraestrutura. Essas agendas não se cruzam. Estruturalmente, a regulação do VoD é muito mais importante. As iniciativas para atração de investimentos são um tratado de política pública.

CC: O que significa regular o mercado, no audiovisual?
MT: A regulamentação deve entender os desiguais de forma desigual. A ação do Estado existe para dar proteção maior a quem não sobreviveria numa competição feroz. Advogamos, sobretudo, por quem tem menos capacidade de incidência – que, neste caso, é a produção independente. O ambiente regulatório deve, ao mesmo tempo, garantir que as plataformas prosperem no Brasil, para que sigam investindo recursos próprios e aumentem a base de contribuição da Condecine, que alimenta o fundo público. A regulação precisa ainda pensar nas plataformas independentes brasileiras. Uma boa regulação, em resumo, deve tanto permitir o crescimento do setor quanto garantir o equilíbrio das assimetrias existentes. •


*A jornalista viajou a convite do Rio2C.

Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A regulação possível’

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Last Update: 12/06/2025