O presidente Lula (PT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) fizeram as pazes na última sexta-feira 7, quando o petista viajou para o sul de Minas Gerais e, pela primeira vez neste mandato, visitou uma área do movimento para anunciar um pacote de medidas voltadas à redistribuição de terras.

Não que Lula e o MST tenham brigado, mas a paralisia da reforma agrária na primeira metade do terceiro mandato provocou críticas contundentes dos sem-terra – um dos mais fiéis aliados do presidente.

Ao lado de Lula, ministros, a primeira-dama, deputados federais e estaduais sujaram os sapatos de terra em um ato estrategicamente pensado para destacar a importância da reforma agrária na produção de alimentos, em tempos de inflação galopante da comida que vai ao prato do brasileiro.

Sacas de café, espigas de milho, melancias, jacas, bananas e uma variedade de hortifrútis formaram um mosaico com a expressão “reforma agrária” – cenário ideal para fotos que, claro, foram parar no perfil pessoal do presidente no Instagram, seguindo as diretrizes do marqueteiro Sidônio Palmeira, à frente da Secretaria de Comunicação Social do governo desde janeiro.

Nas imagens, Lula ergue uma abóbora como um troféu, beija uma criança e puxa a barra da calça mostrando para Janja a meia estampada com o rosto de Frida Kahlo.

Também foi fotografado sem o chapéu de palha – acessório que adotou desde a cirurgia na cabeça, em dezembro, após um tombo no banheiro. Mas, diante das lentes de seu fotógrafo oficial, Ricardo Stuckert, faltou um detalhe corriqueiro em encontros com o MST: o boné vermelho do movimento.

Na política, um gesto – ou a falta dele – nunca é casual. Lula, Sidônio e Stuckert sabem bem disso.

“Nós não queremos dizer que o agronegócio não presta”, afirmou o presidente, o último a discursar em uma arrastada cerimônia em que lideranças de movimentos sociais falaram antes – e defenderam exatamente o oposto.

“O agronegócio já demonstrou que está mais interessado em lucrar com suas exportações, enquanto deixa o povo brasileiro sem comida”, reafirmou MST, em nota publicada após o evento.

A passada de pano de Lula para o agro talvez revele o motivo de não ter usado o boné vermelho, como sempre fez em encontros com líderes do movimento ou visitas a assentamentos.

Ainda mais nestes tempos em que os bonés se tornaram uma expressão latente do que se passa dentro da cabeça. Que o digam os partidários de Trump, com o MAGA (Make America Great Again), e a resposta nacionalista – e quase xenófoba – idealizada por Sidônio: “O Brasil é dos brasileiros”, slogan que, aliás, estampa a foto de perfil de Lula no Instagram. Convenhamos, o Brasil é de todos, né? Inclusive dos imigrantes.

Com a popularidade em baixa, o presidente buscou no MST um aliado histórico e fiel. Mas, no delicado equilíbrio da ampla coalizão que o elegeu, sabe que não pode desagradar demais o agronegócio – setor que tem no Congresso uma das articulações mais sólidas com a bancada ruralista.

Para grande parte do agronegócio, o vermelho do MST é o vermelho do diabo. A bandeira da reforma agrária é vista como uma ameaça às terras improdutivas – muitas delas obtidas por grilagens e métodos pouco republicanos.

Para afagar o MST, o governo escolheu como palco do evento uma área simbólica: o acampamento Quilombo Campo Grande, no sul de Minas Gerais, criado em 1998 por ex-trabalhadores de uma usina de cana-de-açúcar que faliu e deu calote nos empregados.

Nos últimos 27 anos, o acampamento resistiu a 11 despejos, sendo o mais recente em 2020 – no auge da pandemia de Covid-19 –, que resultou na destruição da escola do assentamento e de algumas moradias.

Presenciar um despejo é sempre uma cena devastadora. Ver uma escola ser destruída, então, beira o absurdo. Estava lá, como repórter, e ainda guardo na memória o som grave dos cassetetes batendo contra os escudos do batalhão de choque – respaldado pelo governador Romeu Zema (Novo) – enquanto os policiais marchavam em direção aos sem-terra, escoltando o trator que reduziria a escola Eduardo Galeano a escombros.

A escola foi reconstruída e batizada com o mesmo nome e, quase cinco anos depois, recebeu a comitiva presidencial, que anunciou a desapropriação de três fazendas onde estão acampadas as 450 famílias do Quilombo Campo Grande. Ao todo, quase 4 mil hectares de terras já superprodutivas, com destaque para o café orgânico Guaií (que, aliás, é uma delícia).

Assim como a decisão de não posar com o boné do MST, a escolha do governo de anunciar o pacote de medidas da reforma agrária no sul de Minas Gerais, e não no sul do Pará, também diz muito.

Sem desmerecer a história de luta e resistência dos acampados do Quilombo Campo Grande, o anúncio mais importante do evento foi a desapropriação da fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no sul do Pará – palco da maior chacina no campo deste século no Brasil.

Em 24 de maio de 2017, dez trabalhadores sem-terra foram executados por policiais no local, no episódio que ficou conhecido como Chacina de Pau D’Arco. Embora 16 policiais tenham sido acusados, todos aguardam julgamento em liberdade, e as investigações sobre os mandantes do crime não avançaram.

Depois do massacre, cerca de 220 famílias voltaram a ocupar a área, mas a violência continuou. Em janeiro de 2021, Fernando Araújo dos Santos, principal testemunha da chacina, foi assassinado após denunciar ameaças de policiais.

Os acampados não foram avisados por ninguém do governo federal de que a desapropriação, finalmente, seria assinada. Ficaram sabendo quando liguei para um dos líderes, um dia antes da assinatura, para entrevistá-lo para uma matéria publicada na Repórter Brasil. Montaram às pressas um telão na área para assistir ao discurso de Lula, transmitido pela EBC.

Não ouviram da boca de Lula nenhuma menção especial a eles, nem uma palavra sobre o sangue derramado das dez vítimas da chacina ou a respeito da impunidade dos executores. Assim como o vermelho do boné, o vermelho do sangue – marca profunda da luta pela reforma agrária – parece não se encaixar na nova imagem que o presidente, o governo e o marqueteiro querem projetar.

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Last Update: 10/03/2025