A denúncia oferecida ao STF pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, representa uma oportunidade para a reabilitação histórica da Justiça brasileira, não apenas por, se aceita, levar militares a responder perante as autoridades civis por crimes cometidos contra a democracia, mas por, após os excessos da Lava Jato, sinalizar os esforços de restabelecimento de práticas judiciais alinhadas aos parâmetros legais e constitucionais no combate a ilegalidades cometidas pela elite política nacional.

A Lava Jato foi a expressão institucional mais evidente da fusão do sistema de justiça criminal no Brasil contemporâneo, resultando em um retrocesso na persecução penal. Ao aproximar-se do modelo inquisitorial, comprometeu a imparcialidade do julgador e restringiu o contraditório e a ampla defesa, produzindo resultados à revelia da ordem constitucional.

Sob um arcabouço legal que enfrentava dificuldades para acomodar instrumentos negociais no processo penal, a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário adotaram práticas investigativas e jurisdicionais que extrapolaram os limites da constitucionalidade. Lula foi condenado e preso. Posteriormente, solto e sua condenação, anulada. O resto é história.

Mas não se iludam aqueles que tomam o envolvimento de Jair Bolsonaro com a justiça brasileira como tragédia ou como farsa. A denúncia contra o ex-presidente e associados por tentativa de golpe de Estado e organização criminosa armada é o mais recente episódio de uma trajetória de aprendizado institucional rumo ao restabelecimento do modelo acusatório e do devido processo legal. Embora a fase judicial ainda não tenha iniciado até o momento, a separação das funções institucionais parece preservada e a atenção ao devido processo legal está em foco, considerando a postura dos agentes judiciais envolvidos.

De fato, o Procurador-Geral da República lidera a acusação, apresentando a denúncia após um minucioso trabalho investigativo da Polícia Federal, que havia indiciado Bolsonaro e dezenas de seus aliados por tentativa de golpe no ano passado. Os julgadores, por seu turno, têm resguardado sua imparcialidade pelo abandono de uma postura ativa na fase pré-judicial, o que envolveu, no léxico lavajatista, a orientação de procuradores da força-tarefa e o direcionamento de ações da Polícia Federal.

Sim, o contestado ministro Alexandre de Moraes está entre os julgadores. Embora o magistrado atue como relator do caso no STF, supervisionando as investigações e, possivelmente, conduzindo o processo penal se a denúncia for aceita, é importante notar que, apesar de críticas à concentração de poderes em um único juiz, não há evidências de que tenha orientado a investigação ou a acusação. Mesmo o fato de figurar como vítima nas investigações relacionadas à tentativa de golpe não justifica seu afastamento, sob o risco de permitir que organizações criminosas influenciem a escolha de seus julgadores.

A história do restabelecimento do devido processo legal em um Supremo pós-Lava Jato ainda está por ser escrita. Diante da oportunidade que a denúncia de Gonet oferece, cabe ao STF desvencilhar-se da imagem de uma justiça politizada. A supervisão judicial da fase investigatória indica a preocupação de Moraes com a legitimidade e a autoridade pública da mais alta Corte do País. Não por acaso, a homologação da delação de Mauro Cid foi conduzida com rigor judicial, assegurando o respeito aos direitos do colaborador e dos investigados, e a verificação criteriosa das informações fornecidas. Diferentemente de acordos anteriores, nos quais os benefícios concedidos aos delatores foram questionados por falta de previsão legal, no caso de Cid os termos do acordo foram estabelecidos de forma transparente e dentro dos parâmetros legais. Além disso, o STF levantou o sigilo dos vídeos dos depoimentos, permitindo acesso público às informações prestadas, contrastando com a falta de transparência observada nas delações da Lava Jato.

Na fase judicial, a gestão temporal estratégica, que suscitou questionamentos sobre a imparcialidade e a justiça dos procedimentos na Lava Jato, voltará a pressionar o Supremo. Embora seja necessário evitar que o julgamento interfira nas eleições de 2026, o STF não pode fazê-lo em detrimento de seu compromisso com a imparcialidade e o devido processo legal. A celeridade processual não deve comprometer a profundidade e a justiça das decisões. A transparência na condução do processo e a fundamentação sólida das decisões são essenciais para preservar a confiança pública na independência e integridade do Judiciário. A bola está com o Supremo. •

Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A reconstrução da Justiça’

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Last Update: 26/02/2025