A condição do Brasil de país em desenvolvimento marcado por profundas desigualdades sociais e regionais, com amplas parcelas do povo vivendo sob o flagelo da pobreza, se soma ao fato de que quase 90% da população brasileira se localiza em áreas urbanas, com cerca de 50 milhões de pessoas vivendo nas cinco principais metrópoles do país. Isso significa que, se quisermos enfrentar os desafios mais prementes da formação social brasileira, atuando no lugar onde as pessoas vivem e trabalham, devemos conferir especial atenção às cidades e regiões metropolitanas, ter em conta a posição estratégia que a questão urbana adquire como parte da tarefa política de consecução de um Projeto Nacional de Desenvolvimento.
As desigualdades na distribuição das atividades econômico-produtivas, na composição e oportunidades no mercado de trabalho, dos níveis de produtividade e renda, no acesso aos serviços e direitos sociais como educação, saúde, trabalho, moradia, lazer e segurança, enfim, na distribuição e localização de tudo que condiciona o nível de qualidade de vida da população, além de possuírem um forte conteúdo urbano e regional, apresentam-se como desafios urgentes para os quais as forças vivas da nação – partidos políticos, movimentos populares e entidades sociais comprometidas com o desenvolvimento do país – são chamadas a propor alternativas concretas para sua resolução.
O desenvolvimento brasileiro, marcado por um intenso processo de industrialização entre os anos 1930 e 1980, se deu sem a realização de uma reforma agrária e sem a consolidação de um grande capital financeiro nacional capaz de realizar os investimentos necessários para o enfrentamento dos desafios urbanos e sociais, trazendo consequências profundas que são ainda hoje sentidas nas nossas cidades. Grandes parcelas da população migraram para os principais centros urbanos, movimento este que não foi acompanhado de forma satisfatória por planejamento e investimentos em projetos de infraestrutura, equipamentos urbanos e universalização dos serviços sociais mais básicos.
Soma-se a isso o fato de que o Brasil experimentou após a década de 1980 um processo de desindustrialização tão ou mais intenso que sua própria industrialização. A crise urbana, que na década de 1970 já era evidente, se avolumou, resultando num processo cumulativo das demandas sociais por melhores condições de vida. O resultado hoje é mais que evidente. Amplas parcelas da população vivendo em favelas e bairros com péssimas condições de habitabilidade e altos níveis de pobreza, moradias precárias, longas distâncias para se chegar ao local de trabalho, ausência de equipamentos de lazer, de ambientes verdes. Condição propícia para o controle desses territórios pelo crime organizado, espalhando insegurança nas cidades.
Isso coloca em primeiro plano a necessidade de se pensar na promoção do desenvolvimento econômico e social considerando o território como dimensão particular da ação política e institucional. À medida que o desenvolvimento e suas diferenciações adquirem concretude ao se expressarem territorialmente, torna-se imperativo a elaboração de políticas de planejamento do processo de desenvolvimento urbano-regional e metropolitano que tenham como objetivo elevar as forças produtivas e perseguir a equidade na distribuição de recursos, de oportunidades de trabalho, de acesso a serviços, equipamentos públicos e coletivos e dos benefícios sociais de um ambiente urbano de maior qualidade.
A elevação da renda individual e das famílias através, por exemplo, da criação de empregos, é fundamental para elevar a capacidade de consumo da população e suas condições de vida. Porém, para além das necessidades sociais que são satisfeitas através do salário e da remuneração individual, existe uma outra dimensão das necessidades sociais que muitas vezes é negligenciada. Trata-se dos tipos de consumo que se realizam coletivamente, por meio de bens e serviços públicos, representados pelas infraestruturas e equipamentos que permitem a reprodução social no ambiente urbano.
A riqueza de um país e de um povo não se mede apenas pela predominância de empregos de maior complexidade, com remunerações mais altas, que permitem seus cidadãos terem acesso a bens e serviços individuais que atendam às suas necessidades pessoais. Um país desenvolvido deve ser medido também pela qualidade de suas cidades, pela universalização do acesso a moradias e bairros que ofereçam boas condições de vida, meios de transporte modernos e que atendam às demandas da população. Por um ordenamento territorial que garanta uma distribuição eficiente dos postos de trabalho e dos locais de moradia, do acesso a serviços e comércio, reduzindo as distâncias e o tempo de deslocamento das pessoas, garantindo que estas possam usufruir mais e melhor do seu tempo livre.
Para se enfrentar as desigualdades sociais em suas mais variadas formas é preciso pensar para além do aumento da renda das pessoas vistas de modo atomizado. É preciso adicionar a dimensão urbana e territorial dessas desigualdades, destacando a importância de se garantir condições mais equitativas do uso social do ambiente urbano. Precisamos ter claro que não existe país desenvolvido sem cidades desenvolvidas.
O que se propõe aqui é uma estratégia que faça convergir o desenvolvimento econômico-social com o desenvolvimento urbano-regional. Fazer do enfrentamento à questão urbana um eixo do Projeto Nacional de Desenvolvimento a ser construído para o Brasil. Para isso, pensamos ser de grande importância ter a experiência chinesa de desenvolvimento como referência.
País também marcado por profundas desigualdades sociais e regionais, a China experimentou nas últimas décadas um processo de desenvolvimento que foi capaz de retirar mais de 800 milhões de pessoas da pobreza extrema, tornar o país a segunda maior potência econômica do mundo, tudo isso com um intenso e planejado processo de urbanização. Só entre 1996 e 2019 cerca de 460 milhões de chineses de áreas rurais migraram para as cidades. A população urbana permanente, que em 1978 era de 170 milhões de pessoas, passou para 831 milhões em 2018. E atualmente o governo tem uma meta anual de criar cerca de 12 milhões de novos empregos urbanos por ano, o que requer pesados e constantes investimentos em projetos de infraestrutura urbana.
O desenvolvimento econômico e social chinês tem como um de seus elementos estratégicos a intervenção política e governamental a partir da execução de planos e projetos de caráter e repercussões territoriais. O planejamento urbano e regional se apresenta como um dos principais vetores do desenvolvimento, manifestando-se num processo de urbanização regionalizado baseado em projetos urbanos e de transporte que permite elevar as forças produtivas do país e as condições de vida da sociedade. Um exemplo paradigmático tem sido a edificação do sistema de trens de alta velocidade, que em apenas 20 anos saltou do zero para cerca de 40 mil km de linhas espalhadas pelo território nacional, conectanto as principais cidades e regiões metropolitanas do país, dinamizando a economia e beneficiando a população.
Tudo isso parece nos indicar um caminho, que pode ser apropriado pelo nosso partido na proposição de estratégias para o Projeto Nacional de Desenvolvimento brasileiro, adaptado à nossa realidade e aos nossos desafios particulares. Para isso, é primordial construir uma Nova Economia Política, capaz de romper com a atual dinâmica de acumulação rentista e centrada no ganho financeiro. Estabelecer um nexo entre o desenvolvimento urbano e o desenvolvimento nacional a partir da constituição de um novo regime de acumulação fundado numa dinâmica econômica baseada em grande medida em projetos de construção de bens públicos relacionados a um salto qualitativo das cidades e regiões metropolitanas brasileiras. Planejar e projetar o desenvolvimento urbano brasileiro como força motriz do desenvolvimento econômico e social nacional.
*Doutor em planejamento urbano e regional pelo IPPUR/UFRJ. Assessor de Projetos Especiais no Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. Militante da Base Largo do Machado/Laranjeiras, Rio de Janeiro.