Jeca e vagabundo: a retórica da quadrilha e o golpe dentro do golpe
por Eduardo Silva
Ficamos estarrecidos com os áudios divulgados sobre o planejamento de golpe de estado, cujos coordenadores, já se sabe, eram o ex-presidente e seus asseclas. Já a direita, nos grupos de WhatsApp, não vê nada de errado nisso, preferindo chamar de “narrativas” da imprensa ou negar os fatos.
Chama a atenção que os membros da organização criminosa, eufemismo para “quadrilha”, ora usem o codinome “Jeca”, ora os substantivos “ladrão” e “vagabundo”, para se referirem a Lula.
O termo “Jeca”, que tem origem no personagem “Jeca Tatu” de Monteiro Lobato, é uma forma pejorativa usada para descrever alguém percebido como inculto ou provinciano. Se a quadrilha vê Lula dessa forma, como veria Bolsonaro, aquele modelo de erudição?
Pesquisei também sobre “ladrão”. “Ladrão” é um substantivo masculino que se refere a uma pessoa que pratica furtos ou roubos. O termo é amplamente utilizado para descrever indivíduos que cometem crimes contra o patrimônio, seja em pequena ou grande escala. Enquanto Lula não tem contra si nenhuma prova de roubo, seja comum, seja de patrimônio, Bolsonaro já está indiciado pelo roubo das joias sauditas avaliadas em mais de 5 milhões de reais.
Restava verificar a propriedade do termo “vagabundo”. Busquei nos dicionários seu significado:
- “Aquele que leva uma vida errante, sem ocupação fixa, e que muitas vezes depende da caridade alheia para sobreviver.” Não é o caso de Lula.
- “Indivíduo ocioso, que evita o trabalho ou qualquer atividade produtiva.” Falam de Lula, mas quem é mesmo que trabalhava apenas 3 horas por dia?
- “Pessoa desocupada ou preguiçosa.” Quem é mesmo o cara que só não tinha preguiça para passear de jet-ski e participar de motociatas?
Na verdade, a quadrilha se apropria do adjetivo para simplesmente se referir a alguém que ela odeia e que se tornou, entre outros, seu alvo a ser “neutralizado”.
Transparece nos áudios e nos documentos elaborados pela quadrilha indícios de que se tramava algo como golpe dentro do golpe. Parte da esquerda está revoltada com essa hipótese porque ela poderia ser usada para tentar livrar Bolsonaro da acusação de ser o coordenador da tentativa de golpe. Porém, essa tese não é esdrúxula e explico por que.
Bolsonaro, conforme revelado nos áudios, é claramente o coordenador e o maior beneficiário da intentona. Isso não se discute e se deve, em primeiro lugar, ao fato de ter obtido 58 milhões de votos na eleição de 2022, um número muito significativo. Portanto, os militares golpistas precisavam do capitão.
Com o golpe bem-sucedido, uma junta militar governaria o país, inicialmente com Bolsonaro no comando. Num segundo momento, algo deveria acontecer para eliminar o problema Bolsonaro: uma renúncia forçada, um acidente, transformá-lo numa rainha da Inglaterra ou qualquer outra coisa que a quadrilha pensaria mais tarde.
Mas por que governar sem o capitão? A resposta pode estar na patente dele. Um governo, agora, de fato militar puro sangue não poderia ter um capitão mandando em generais.
Outra razão estaria na fragilidade e na ilegitimidade desse governo que não teria a aceitação da maioria da população que votou em Lula e que, portanto, sofreria oposição com possíveis revoltas país afora, além da ausência de apoio dos Estados Unidos, países da Europa e China. Por isso, não poderia permitir-se a cometer erros, sob o risco de descontentamentos que levassem a derramamento de sangue.
A junta militar já iniciaria com o grande problema de controlar a inflação que Jair Bolsonaro deixou em 2022. Todos sabemos (e os militares também sabem muito bem) que o capitão não é chegado ao trabalho. Mas não é só isso.
Além do desafio de governar um país imenso como o Brasil sem apoio popular da maioria, os militares não poderiam se dar ao luxo de ter novamente à frente da Nação um desqualificado que fala besteira dia sim, dia também e que, em condições extremas como durante a pandemia, se nega a comprar vacinas, destrata a imprensa e faz chacota com quem não consegue respirar e desune o país.
É provável que, a esta altura, Bolsonaro já considere a hipótese de que seria somente um instrumento para viabilizar o golpe, e que na primeira oportunidade seria descartado. Talvez seja por isso que não esteja defendendo nenhum dos golpistas.
Talvez seja por isso que Braga Netto se apressou em desmentir o golpe dentro do golpe, mas ainda não desmentiu a única coisa de que é acusado: ser um dos coordenadores da intentona.
Eduardo Silva é arquiteto, professor e escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, a Sangria Estancada.
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