Na manhã do dia 29 de maio, o Brasil assistiu — mais uma vez — a um ato cuidadosamente coreografado da longa tradição de espetacularização punitiva: MC Poze do Rodo, sem camisa, algemado, com os braços torcidos para trás, foi conduzido por agentes do Estado como quem carrega uma ameaça iminente. Não importava o teor das acusações, tampouco a existência de provas — a imagem já valia por uma sentença. Poze havia sido condenado antes mesmo de qualquer interrogatório. O crime? Ser quem é, vir de onde veio, falar como fala, cantar o que vive.

“Eu tô voando alto / ninguém vai me alcançar”, canta Poze em um de seus maiores sucessos. Mas no Brasil, a ascensão de um jovem negro da favela ainda é tratada como uma afronta ao pacto não escrito da branquitude meritocrática. O incômodo se converte em processo, a ousadia em suspeição, o sucesso em ameaça.

Enquanto empresários delatados pela Lava Jato circulam por halls refrigerados de hotéis cinco estrelas e políticos sob investigação caminham tranquilamente pelo Congresso, a juventude negra é reduzida a cena de captura. Figuras públicas acusadas de crimes gravíssimos — feminicídio, racismo, corrupção sistêmica — seguem sendo conduzidas ao banco da frente das viaturas, com camisas de grife, óculos escuros e ar de quem só foi ali “resolver uma pendência”. Já Poze, por outro lado, foi apresentado ao país como um troféu do Estado, uma performance cuidadosamente encenada para alimentar o tribunal da opinião pública.

Trata-se de uma prisão que mais se assemelha a um ritual público de controle do corpo e da imagem. Um linchamento moral digital autorizado e impulsionado pela estrutura racista da justiça penal. E é aqui que reside o verdadeiro escândalo jurídico: não no conteúdo de suas letras, mas na forma como o aparato do Estado opera uma exceção disfarçada de legalidade.

Como aponta Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas, “o negro não é apenas percebido como diferente; ele é constantemente chamado a justificar sua existência”. A prisão de Poze não foi, portanto, um ato isolado, mas a repetição trágica de uma lógica onde a polícia não executa a lei — encena um espetáculo. Um espetáculo que não se dirige ao Judiciário, mas à audiência sedenta de redes sociais, onde a culpabilidade é medida em curtidas, e a narrativa vale mais do que qualquer inquérito.

Todo mundo sabe como brancos ricos são presos no Brasil: com discrição, direito à palavra e ao banco da frente da viatura. Para Poze, a mesma Constituição vira papel velho.

A seletividade penal brasileira é tão grotesca que já se tornou previsível. É o que juristas críticos chamam de sistema penal de exceção racializada: um direito penal simbólico que escolhe seus alvos com precisão cirúrgica. E a cultura preta e periférica, quando ousa denunciar as violências que a formaram, é imediatamente tratada como apologia ao crime — não porque incita a criminalidade, mas porque revela a hipocrisia das instituições.

E se há algo que verdadeiramente incomoda, é a autonomia. É ver o menino do Rodo cantar que “tá voando alto” e saber que ele chegou lá sem pedir licença. Sem intermediação branca. Sem se ajoelhar no altar da respeitabilidade. O incômodo não é com o que ele canta — é com o que ele representa. Poze é filho da ausência do Estado, da violência sistemática, da fome, da escola precária, do saneamento inexistente. Ele é sobrevivente — e isso, para muitos, é imperdoável.

Não cabe a este artigo julgar sua culpa ou inocência — essa é tarefa das instituições, desde que respeitem os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Mas cabe, sim, denunciar que a forma como foi preso viola qualquer parâmetro mínimo de dignidade e imparcialidade. A encenação policial, as imagens vazadas, os comentários racistas naturalizados: tudo isso compõe o real teatro do absurdo.

E a pergunta que fica é: por que o Estado brasileiro tem tanto medo da liberdade de corpos negros? Por que a imagem de um jovem da favela conquistando reconhecimento nacional provoca tanto pânico? Por que subir no palco é, para alguns, mais perigoso do que roubar milhões dos cofres públicos?

A resposta está nos dispositivos de exclusão que regem a ordem racial brasileira. Como ensina Sueli Carneiro, o racismo não é apenas um desvio, mas parte constitutiva da organização do poder no Brasil. E quando um Poze aparece, com microfone em punho e multidões atrás, ele ameaça o equilíbrio dessa estrutura.

Porque a cada verso de “tô voando alto / ninguém vai me alcançar”, Poze ressignifica a ideia de ascensão. Mas diferentemente de Ícaro — cuja tragédia estava em desafiar o Sol com asas de cera —, Poze nunca teve o privilégio da queda poética. Para ele, o voo já é transgressão. A altitude é inadmissível. A queda é uma punição que já estava escrita antes da decolagem.

A diferença é que, neste país, não é o Sol que derrete as asas de homens negros — é o Estado.

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Last Update: 02/06/2025