A primeira vítima é a verdade

por Gustavo Tapioca

A frase “Na guerra, a primeira vítima é a verdade” é famosa no jornalismo e foi proferida pelo senador americano Hiram W. Johnson em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1975, o escritor e correspondente de guerra Phillip Knightley publicou o livro A Primeira Vítima, uma obra que aborda a relação entre jornalismo e guerra.

O livro analisa o papel dos correspondentes de guerra e como a imprensa era usada para propagar mentiras e manipular a opinião pública durante os conflitos. Knightley examina duas dezenas de guerras, desde a Guerra da Crimeia até a Guerra do Vietnã. Hoje, imprensa virou um tipo de mídia, mas a verdade continua sendo a primeira vítima também na guerra dos EUA contra o Irã.

O ataque dos EUA ao Irã, sábado, 21 de julho, e a forma como ele é narrado de maneira diametralmente oposta pela mídia americana e chinesa é um exemplo cristalino da tese de que a mídia, especialmente a ocidental dominante, não apenas informa, mas constrói versões da realidade.

A grande mídia ocidental (CNN, Fox News, NYT, etc.) reproduziu a versão de Trump de que as instalações nucleares do Irã foram “completamente destruídas” num ataque “espetacular” de sucesso militar. Sem checagem crítica, ecoando a retórica triunfalista.

Já fontes iranianas e chinesas mostram imagens e análises que contestam frontalmente essa versão, apontando que as instalações nucleares são protegidas por camadas subterrâneas e que parte do material já havia sido removido. Isso revela que a mídia pode se tornar porta-voz do governo, especialmente em contextos de guerra.

A guerra da informação

Enquanto os mísseis cruzam o céu, outra guerra corre em paralelo: a da desinformação. E, nela, a mídia ocidental atua como linha de frente — mas não em defesa da verdade, e sim dos interesses de seus governos aliados.

Quem tem apontado isso com coragem, antes mesmo do ataque direto dos Estados Unidos às instalações de enriquecimento nuclear do Irã, é o professor iraniano Mohammad Marandi, acadêmico de destaque, com presença constante na BBC, Sky News e Al Jazeera.  Marandi tem sido voz crítica, mostrando como os grandes meios ocidentais distorcem os fatos para proteger Israel e demonizar o Irã.

Segundo ele, essa cobertura é marcada por uma lógica perversa: quando Israel ataca, é “defesa”. Quando o Irã responde, é “provocação”. Mortes de civis iranianos? Mal aparecem. Já qualquer dano em Tel Aviv vira manchete urgente.

Marandi vai além. Para ele, o objetivo dos EUA e de Israel não é conter um programa nuclear, mas enfraquecer o Irã, forçar uma mudança de regime e cortar o apoio à causa palestina. E a mídia entra nessa jogada como aliada fiel — moldando manchetes, escolhendo verbos, silenciando contextos.

Duas versões da mesma guerra

Enquanto Trump se gaba de um ataque “cirúrgico” e “definitivo”, analistas iranianos e chineses mostram que os danos foram menores que o anunciado — muito longe da destruição total. Parte das instalações estavam vazias ou protegidas. Mas esse tipo de nuance não interessa à imprensa que prefere ecoar o discurso oficial como se fosse verdade absoluta.

A questão é que a mídia ocidental não erra por acaso. Ela opera dentro de um padrão. E Marandi ajuda a destrinchar isso:

Framing seletivo: ataques israelenses são “defensivos”; ataques iranianos são “terroristas”.
Fontes únicas: só se ouve o lado dos EUA, da OTAN ou de Israel. As vozes do Sul Global são ignoradas ou desqualificadas.
Omissão sistemática: quando Israel viola leis internacionais ou mata civis, o assunto some ou vira rodapé.
Demonização dos inimigos: regimes “autocráticos” do eixo Irã–China–Rússia–Venezuela são alvos constantes, enquanto aliados ocidentais autoritários escapam ilesos.

Isso já aconteceu antes: no Iraque (com as “armas de destruição em massa” que nunca existiram), na Líbia, na Síria. A tática se repete. O inimigo da vez muda, mas a narrativa é sempre a mesma: nós somos os bons, eles são os vilões.

O que está em jogo?

Marandi alerta que os ataques podem ter saído pela culatra. Longe de enfraquecer o Irã, unificaram o país. A população reagiu com mais coesão, fortalecendo o senso de soberania. Israel, por outro lado, perde hegemonia regional e teme o crescimento da influência iraniana. O professor também prevê um cenário perigoso: se os EUA se envolverem ainda mais, a crise pode fugir do controle — com impactos dentro e fora do Oriente Médio. Inclusive nos próprios Estados Unidos.

A mídia como arma

Talvez o mais grave de tudo isso seja o papel da mídia como engrenagem da guerra. Em vez de informar, ela desinforma. Em vez de questionar, legitima. Em vez de ouvir todos os lados, escolhe o seu lado — e o empacota como “verdade”.

Essa manipulação tem consequências. Ela não só distorce nossa percepção sobre o mundo, mas ajuda a justificar sanções, bombardeios, ocupações e mortes. Tudo isso sob o verniz de “liberdade”, “democracia” e “segurança”.

O alerta final de Marandi é direto: a imprensa não pode continuar sendo braço do império. “Precisamos de jornalismo crítico, corajoso, disposto a romper com a bolha ocidental e ouvir vozes que estão fora do eixo Washington–Londres–Tel Aviv.”

Gustavo Tapioca é jornalista e escritor. Possui um MBA em jornalismo pela Universidade de Wisconsin – Madison. Foi diretor do Jornal da Bahia.

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Last Update: 24/06/2025