A Política Monetária e a Medicina Medieval III
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Trinta anos atrás, houve um embate entre nossa empresa e os gestores de uma rede de supermercados a quem dávamos consultoria. Nossa missão era desenvolver um data warehouse (armazém de dados) cuja mineração poderia nortear as decisões gerenciais. Eram sessenta e duas lojas com quarenta e cinco mil itens cada, somando cinquenta e nove mil itens, posto que não havia plena coincidência no portifólio das lojas em conjunto.
Eles insistiam em usar o ticket médio dos consumidores, ao mesmo tempo em que mantinham as filas de até cinco itens para agilizar o check out. Explicávamos que as compras não correspondem a uma distribuição normal, ou seja, não são como as coisas da Natureza, em que o número de amostras tendem a aproximar-se do centro. Quando dizemos que a altura média de um brasileiro masculino adulto é de 1,75m, com um desvio de 10 cm, estamos dizendo que 68,75% dos homens adultos brasileiros estão entre 1,65 m e 1,85 m. Isso não vale para as despesas com supermercado porque elas são função clara da restrição orçamentária do consumidor, sendo secundariamente afetada pelos hábitos culturais de cada comunidade. Como corolário das dificuldades em estabelecer um valor significativo para a expectativa de gastos dos clientes, há o quão imprescindível cada artigo é para o bem-estar do consumidor.
Abraham Maslow (1908 – 1970) foi um psicólogo americano que conseguiu sistematizar o conhecimento do óbvio, que os indivíduos comportam-se de acordo com o nível de satisfação de suas necessidades, que podem ir das mais básicas às mais refinadas, hierarquizando-as. O epíteto de “óbvio” vem de que já havia uma máxima de tempos imemoriais, “Quem tem fome tem pressa”, que já traduz isso. A História já dava exemplos significativos de que “Quando a fome entra pela porta, o amor sai pela janela”. Há ainda outros mais contundentes como o Holomodor na Ucrânia e a fome provocada pelo “Salto para o Futuro na China de Mao. Os estudiosos de microeconomia e de marketing debruçaram-se sobre o assunto, sendo que os primeiros matematizaram a questão no conceito de elasticidade; enquanto os últimos criaram o que ficou conhecido como Pirâmide de Maslow. Na sua base, ficam os itens consumidos pelo maior número de pessoas, independentemente de sua renda; enquanto, no topo, encontram-se os itens mais seletivos, que não necessariamente são os mais caros.
No embate, defendíamos que a frequência dos itens nos carrinhos de compras era muito mais importante para o planejamento da cadeia de suprimentos do grupo do que o valor no ticket. Entre os estatísticos, a combinação de elementos e sua frequência é conhecida como Distribuição de Poisson.
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Ocorre que projetar os gastos dos clientes é imprescindível para o orçamento de um supermercado, pois é a partir disso que se estabelecerão as compras, estimando-se a margem e a capacidade de novos investimentos. Essa projeção advém da capacidade de o gestor planejar seu portifólio para maximizar a percepção de a loja suprir as necessidades de sua clientela, o que os marketeiros chamam de “encantar o consumidor”.
O resultado de nosso trabalho foi o de projetar carrinhos de compras, dos mais frequentes para os mais raros, consolidá-los, daí estimar as compras loja a loja e para o grupo como um todo, facilitando a negociação com fornecedores.
O resultado do nosso trabalho contradisse frontalmente a tendência de as grandes lojas fazerem o que se chama de “administração por categorias”. Nesse método, agrupam-se os itens consoante seu grau de concorrência mútua, ou seja a capacidade de um item substituir o outro, mais ou menos como o IBGE faz com os cálculos de índices de inflação.
A categorização dos produtos, por mais que se tente evitar, tende à manipulação humana, por bem intencionada que seja. Nos anos 1960, a frase “sem contato manual” era argumento de venda. Não se pretendia dizer que os operários que entrassem em contato com os produtos eram criminosos, mas que contaminariam o material com bactérias e fungos, provavelmente danosos à saúde. Da mesma forma, a determinação das categorias carrega as impressões digitais dos envolvidos, não significando vício intencional, mesmo assim, um vício.
A tabela a seguir, retirada do site do IBGE demonstra bem essa contaminação. A guisa de exemplo, tomemos somente dois grupos, 1110- Aves e Ovos e 1116- Sal e demais condimentos. No primeiro caso, perus não têm o mesmo mercado que frangos, ao mesmo tempo em que granjas de criação para corte não são nem parecidas com as destinadas as galinhas e codornas poedeiras. Ao mesmo tempo, o sal que é o exemplo acadêmicos de bem inelástico, sendo um mineral, está na mesma categoria que produtos geralmente agrícolas, numa flagrante distorção.
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Imaginemos agora que o país seja um imenso supermercado com milhões de consumidores disputando produtos, que se dividem em bens e serviços. Não se pode imaginar que a média seja representativa do consumo, visto que existe uma pirâmide econômica, em que ricos e pobres disputam bens de primeira necessidade, enquanto os itens vão-se tornando cada vez mais seletivos consoante a renda e hábitos culturais das famílias. Assim como o supermercado precisa conhecer o portfólio de consumo de seus clientes, o Estado precisa conhecer o da população, tal que, à luz da variação de preços, seja capaz de inferir a taxa de inflação, o que, por sua vez, deverá nortear a política monetária.
Os recursos informáticos de hoje permitem que se estabeleçam carteiras de consumo, mais ou menos como os carrinhos virtuais a que nos referimos acima. Essas carteiras poderiam ser avaliadas em reais e elencadas das mais frequentes para as mais seletivas ajudando a determinação da taxa de inflação, ou mesmo servindo de contraponto ao método de agrupamento em categorias atualmente usado.
Não se trata de confrontar o trabalho do IBGE, um dos institutos estatísticos mais reconhecidos mundialmente, mas fazer algumas sugestões para que o Banco Central do Brasil seja mais preciso na definição da política monetária e de crédito. Isso passa por mitigar movimentos que levam à volatilidade capaz de confundir os policy makers, o que deverá ser o assunto da próxima matéria.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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