A Política Monetária e a Medicina Medieval II

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Todos os mamíferos tendem a ter variações de temperatura corporal ao longo do dia. Suponhamos que, em uma competição, façamos um cavalo galopar por 40 km. Quando ele parar, estará com uma temperatura corporal maior que 40°C, quando o normal para a espécie em repouso fica ao redor dos 37°C. Isso não significa, porém, que o animal esteja com febre, apenas que está superaquecido e um bom banho o pode trazer à temperatura normal. Às vezes, o superaquecimento se mostra pela frequência cardíaca elevada com mais ênfase do que a elevação da temperatura em si, pois ele pode dissipar calor pelo suor. Se o cavalo estiver em repouso e sua temperatura estiver a 40°C, a probabilidade de ele estar doente passa a ser considerável e o retorno ao equilíbrio pode precisar de medidas mais específicas, quando não contundentes. O tratador poderá baixar a temperatura do animal submetendo-o a um banho frio, até mesmo a uma sangria, mas ela vai subir novamente, posto que a causa não terá sido debelada. Sim, uma sangria pode baixar temporariamente a temperatura porque, pelo derramamento de sangue, joga-se fora mais calor do que se é capaz de produzir. O problema é que, a cada sangria, o cavalo ficará mais fraco, até que fique doente de verdade. O fato é que, enquanto o cavalo estiver vivo, ele produzirá calor pelo simples fato de que é uma máquina e todas as máquinas dissipam parte da energia consumida em calor.

O mesmo acontece com a economia de um país. Tome-se a inflação como a geração de calor em animal homeotérmico como uma ave ou um mamífero. Enquanto a economia estiver funcionando, haverá inflação porque, por ser uma máquina imperfeita, seu funcionamento  sempre resultará em alguma inflação, que poderá ou não ser saudável. Se o nível de atividade econômica for excessivo, o nível de preços tende a subir assim como a temperatura do cavalo. Ocorre que a economia pode estar superaquecida sem que o nível de preços suba significativamente porque pode haver uma participação maior das importações no portfólio de consumo interno. Seria mais ou menos como o batimento cardíaco do cavalo estar muito acelerado, denotando esforço, e ele tentar compensar o possível aumento de temperatura entrando em um rio. Pondo de uma outra forma, não há como impedir que a temperatura suba quando o cavalo está trabalhando, da mesma forma com que os preços tendem a subir quando a economia está em crescimento. Ela estará doente caso os preços estejam crescendo apesar de o nível de atividade não ser condizente com o aumento da população, ou mesmo, com a manutenção da posição do país perante o cenário mundial.

O GGN vai produzir um novo documentário sobre os crimes impunes da Operação Lava Jato. Clique aqui e saiba como apoiar o projeto!

Claro que, se pusermos o cavalo a trabalhar além de sua capacidade, sua saúde ficará em risco, que será tão mais sério quanto maior for o sobre esforço a que o animal for submetido. Da mesma forma, a inflação não pode ser descuidada, mesmo que a economia não esteja doente. O que não se pode é usar sempre o mesmo remédio, como se fazia com as sangrias da Idade Média. Infelizmente, a Economia não é uma ciência desprovida de interferências políticas. Ao contrário, a economia é o maior motivador para a política em si. Por causa disso, mesmo que os economistas saibam que as medidas em uso não passam de placebos, estão sujeitos aos charlatões que estão no poder, independentemente de estarem dentro ou fora do governo. Mesmo assim, no poder.

A fronteira entre o cuidado e o charlatanismo reside justamente no repertório. O cuidador procura a causa da mazela e parte para um combate específico. O charlatão limita-se a combater os sintomas. É justamente por isso que, ao tornar independente o Banco Central, dando-lhe a função específica de combater a inflação, institucionaliza-se o charlatanismo e aniquila-se, por força de lei, a capacidade de o Governo cuidar. No próximo artigo, serão discutidas as principais formas de medir-se a inflação e a capacidade de cada uma delas avaliar se o fenômeno está dentro ou fora do saudável.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 05/02/2025