O momento tem algo de distópico, mas é necessário seguir – e tão melhor se for com afetuosidade e gestos positivos. As 12 canções do álbum de inéditas do cantor e compositor Arnaldo Antunes, intitulado Novo Mundo (selo Risco), transitam nesse contexto, com o autor nos oferecendo, mais uma vez, uma poesia conectada à realidade.
“O disco, de certa forma, coloca a questão de como resistir e reagir a este tempo marcado por uma economia global predatória, um clima ambiental tenebroso e a comunicação acirrando a intolerância geral”, diz o artista a CartaCapital, por Zoom, na entrevista marcada para falar sobre a obra lançada na quinta-feira 20.
“A gente está assistindo a um mundo muito diferente daquele em que eu cresci”, prossegue Arnaldo, que está com 64 anos. “Onde estão os valores que sempre prezei? De repente, está tudo de ponta-cabeça, com esse discurso da extrema-direita baseado em mentiras impulsionadas por algoritmos que invertem os valores.”
Todo esse sentimento se reflete não só nas letras, mas na sonoridade do trabalho recém-lançado. Enquanto seus últimos discos, o Real Resiste (2020) e Lágrimas no Mar (2021) – este feito com o pianista Vitor Araújo –, traziam uma formação intrumental leve e intimista, Novo Mundo é marcado por um som mais pesado, num registro mais próximo daquele de Iê Iê Iê (2009) e RSTUVXZ (2018).
O cantor e compositor explica que a grande turnê Titãs Encontro, realizada em 2023 com a banda que marcou o início de sua carreira musical, em 1982, e na qual permaneceu por dez anos, lhe trouxe o desejo de impor novamente uma “energia rock and roll” ao seu trabalho.
“O disco tem também canções mais serenas, até porque sempre procuro exercer uma certa variabilidade no meu trabalho”, diz. “Mas minha principal intenção era voltar um pouco para esse som. Estava com saudade.”
A faixa-título Novo Mundo, que abre o disco, parece, à primeira vista, sugerir um olhar positivo para a era que vivemos, mas trata-se, na verdade, de um questionamento, principalmente da internet, meio que ele define como “uma decepção”.
“Está tudo de ponta-cabeça, com esse discurso da extrema-direita baseado em mentiras impulsionadas por algoritmos, que invertem os valores”
“Quando surgiu a internet, a gente esperava que ela propiciasse um diálogo mais tolerante com as diferenças, mas ela, na verdade, acirrou o medo e a intolerância”, afirma.
Os emojis são os novos hieroglifos/ Não há como fugir dos algoritmos/ Agora querem extinguir os livros/ Por que será que ainda estamos vivos?, pergunta-se, em Novo Mundo, no qual insere a canção Mundanoh, feita e interpretada pelo rapper baiano Vandal.
O trabalho tem outras faixas em tom crítico, como Tire o Seu Passado da Frente e Tanta Pressa para Quê?, assinada por ele e a mulher, a artista plástica Marcia Xavier. “São faixas reativas ao tempo que a gente está vivendo”, diz.
O lado mais amoroso e solar aparece em É 1° de Janeiro (dele com Marcia Xavier), Acordarei e Pra Brincar (ambas só do Arnaldo).
Em Pra Não Falar Mal, o autor propõe uma conduta resignada: Não seja impaciente com quem é impaciente com você/ Não seja malcriado com quem é malcriado com você/ Não seja intransigente com quem é intransigente com você. “Fiz essa música pensando um pouco na positividade nas relações entre as pessoas”, explica.
Pra Não Falar Mal foi gravada com a participação da jovem carioca Ana Frango Elétrica, ganhadora do prêmio de Disco do Ano de 2023 da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) com o excelente Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua.
Outra parceria presente no álbum é aquela com o norte-americano David Byrne, ex-Talking Heads. Os dois compuseram juntos duas canções bilíngues, em inglês e português: Body Corpo e Não Dá para Ficar Parado Aí na Porta, ambas com letra de Arnaldo e melodia de Byrne.
Tempos atrás, Byrne fez o prefácio da antologia de poesias de Arnaldo Antunes publicada na Espanha, Doble Duplo (2000), e já havia assistido a shows do artista. “Apesar de sentir muita admiração por ele, nunca tínhamos trabalhado juntos”, diz. “As duas canções, de certa forma, retratam a afinidade entre os nossos trabalhos.”
Outro colega de ofício de quem Arnaldo é fã que aparece em Novo Mundo é Erasmo Carlos (1941–2022). A letra de Viu, Mãe?, muito amorosa, foi encaminhada para ele por Léo Esteves, filho do Tremendão, e Arnaldo compôs a melodia. A parceira entre os dois tinha sido iniciada em 2010, quando Arnaldo convidou Erasmo para participar do álbum Ao Vivo Lá em Casa (2010).
Já Marisa Monte faz duo com ele na canção de ambos Sou Só: A vida vem de mim/ Transformo a noite em dia, cantam. “Temos uma história de amizade e parceria muito prolífica e fértil”, diz sobre Marisa, com quem compôs os hits Não Vá Embora (2000) e Ainda Bem (2011), e com quem integrou o extinto grupo Tribalistas.
Produzido por Pupillo, que também fez bateria, percussões e programações de ritmo, Novo Mundo conta com Kiko Dinucci (guitarras, violões e efeitos eletrônicos), Vitor Araújo (teclados e piano) e Betão Aguiar (baixo).
Arnaldo atribui a Pupillo e Kiko Dinucci, com quem nunca havia trabalhado, o “frescor sonoro” do disco. Com novos e velhos parceiros, Arnaldo, mais uma vez, acerta. •
Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A poesia como forma de reação’