Silvio Santos jogando seus “aviõezinhos” de dinheiro para a plateia. Reprodução

 

Publicado no perfil do X de Marcela Magalhães (@MagaMarcela1), doutora em Estudos Ibéricos e Literatura Pós-colonial pela Universidade de Bolonha:

Cresci no interior do Ceará e minha mãe e minha avó adoravam o Silvio Santos. Não eram as únicas. Tínhamos a única TV da rua, e não era raro aparecerem os vizinhos para ver “Porta da Esperança”, “Topa Tudo por Dinheiro”…

Era relativamente fácil entender pelo menos dois dos motivos do sucesso desses tipos de programa. Num país onde o Estado falhava em garantir os direitos básicos de seus cidadãos, a televisão se apresentava como a última tábua de salvação.

A lembrança de Silvio Santos, especialmente entre os mais pobres, não era só fruto de sua popularidade, mas de sua capacidade de penetrar nos rincões mais distantes do Brasil e dar esperanças (muitas vezes vazias) à grande maioria da população do Brasil profundo.

A figura de Silvio Santos passou a ser emblemática não só por sua presença na televisão, mas por essa capacidade de encarnar o sonho falacioso da meritocracia: o mito de que qualquer um, se tiver sorte e souber “jogar o jogo”, pode sair da pobreza.

Era esta espécie de “populismo midiático da pobreza”, uma ferramenta poderosa que prometia salvação para aqueles que estavam à margem da sociedade.

“Porta da Esperança” e “Topa Tudo por Dinheiro” são exemplos disso, onde a pobreza era explorada e espetacularizada, transformando o sofrimento em entretenimento e o desejo de uma vida melhor em um produto a ser consumido pelos espectadores.

Lembro bem como o “Topa Tudo por Dinheiro” explorava abertamente a precariedade econômica e a disposição das pessoas em se submeterem a situações humilhantes em troca de prêmios em dinheiro.

Num país onde o desemprego, a sub-remuneração e a informalidade sempre foram realidades esmagadoras, o programa refletia o desespero das massas, ao mesmo tempo em que reforçava a ideia de que a única saída era submeter-se às regras do jogo, mesmo que custasse a própria dignidade.

Mas, quando um programa de televisão se apresenta como o redentor dos pobres, ele não só ilude o público com promessas de uma salvação rápida e acessível, mas também desvia a atenção das verdadeiras causas da pobreza. E ainda vemos muitos programas assim.

Programas que transformam a miséria em espetáculo, oferecendo prêmios e caridades que, na prática, não fazem muito mais do que lucrar com o sofrimento alheio televisionado. Os reality shows que vemos hoje são filhos destes programas que nossos pais e avós viram.

A promessa de salvação por meio de um programa de TV é, em última análise, uma falácia cruel. Ela alimenta a ilusão de que o capitalismo pode ser humanizado através de gestos de caridade espetacularizados, enquanto mantém intactas as condições que geram a pobreza em primeiro lugar.

A pobreza como moeda de entretenimento é uma das expressões mais perversas do capitalismo contemporâneo. Quando a miséria de milhões é transformada em espetáculo, o sofrimento humano é mercantilizado e explorado como uma fonte de lucro e audiência.

A ironia cruel desse processo é que, enquanto uma pessoa é “salva” em frente às câmeras, milhões permanecem à margem, esperando por uma oportunidade que nunca virá, narrativas superficiais que mantêm o público preso à esperança de uma sorte individual.

Além disso, como um “self-made man”, Silvio personificava o mito da meritocracia e a falsa promessa de que, com esforço e sagacidade, qualquer um poderia “vencer na vida”.

Como lembra Terry Eagleton, o único Messias que nunca nos decepcionará é aquele que nunca aparece, pois ele nunca será confrontado com a realidade e, portanto, nunca falhará em cumprir as expectativas depositadas nele. Silvio Santos deixava esta esperança aberta.

Essa esperança, como Eagleton sugere, precisava permanecer vazia para não ser destruída. No caso de Silvio Santos, a promessa de uma solução para os problemas econômicos era sempre algo possível, mas raramente alcançado.

Ao manter a esperança aberta e indeterminada, seus programas perpetuavam a ilusão de que a pobreza poderia ser superada sem mudanças de verdade, deixando o sistema intacto e as massas à espera de um milagre que nunca chega. Nunca chegou.

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Última Atualização: 18/08/2024