Em 2007, Eunice e Eliana Paiva, viúva e filha do ex-deputado federal Rubens Paiva — preso, torturado e assassinado pela ditadura militar em 1971 —, concederam um longo depoimento ao jornalista e biógrafo Jason Tércio, que pesquisava a trajetória do político para um de seus livros.
O relato, até então inédito e obtido pelo Globo, traz lembranças sobre Rubens Paiva, além de detalhes dos dias que antecederam sua prisão e desaparecimento. Eunice faleceu em dezembro de 2018, aos 86 anos, mais de uma década após a conversa.
O encontro fez parte do material que embasou o livro Segredo de Estado, no qual Tércio reconstrói os bastidores do sequestro e assassinato de Rubens Paiva, contextualizando o cenário político e social da ditadura militar. O drama da família voltou a chamar atenção com o sucesso do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles:
(…) E vocês se mudaram para o Rio depois do golpe?
Eunice Paiva: Sim. Ele disse que não era ainda a Côte d’Azur, mas era o Rio de Janeiro. Fomos morar no Leblon. Bastava atravessar a rua e a gente estava na praia. É uma lembrança lindíssima que eu tenho do Rio de Janeiro. Abria a janela de manhã e via a praia. O Leblon só tinha casa nessa época. Depois que ele morreu, voltei para São Paulo.
Mas voltando ao golpe. O que a senhora lembra da reação do Rubens em casa?
Eunice Paiva: Eu me lembro que pouco antes do golpe, ele apareceu em casa com dois revólveres e disse: “Nunca se sabe o que pode acontecer”. Depois do golpe, ele ajudou Waldir Pires e Darcy Ribeiro a saírem de Brasília num avião até o Rio Grande do Sul, e de lá atravessaram para o Uruguai. Essas coisas ele fazia sem saber o risco que corria.
E quando ele ficou exilado na embaixada da Iugoslávia, a senhora o visitou?
Eunice Paiva: Sim, fui com as crianças. A embaixada estava ainda sem funcionar, mas já inaugurada. Quando ele saiu e foi pra Paris, ele me telefonou e eu fui. Passei algum tempo. Ele ficou só uns cinco ou seis meses. Voltou no fim de 1964. A gente morava na Rua Pará, em Higienópolis, e a empregada disse: “Dona Eunice, venha ver quem está chegando”. Ele telefonou para o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e afirmou: “Eu voltei pra minha família, não pra fazer nenhuma revolução, não se preocupe, não vou te dar trabalho”.
E ele continuou ajudando as pessoas politicamente?
Eunice Paiva: Rubens era a pessoa mais solidária do mundo. Vivia ajudando o pessoal que ele podia ajudar.
A senhora lembra dos nomes de algumas pessoas que ele ajudou?
Eunice Paiva: Não, porque esse problema não chegava em minha casa, até para proteger as crianças. Mas, então, surgiu essa história de que ele devia prestar declarações na Aeronáutica. No dia em que ele foi preso era um feriado. Chegou um grupo em nossa casa, dizendo que era da Aeronáutica, e pediram que ele fosse com eles pra dar um depoimento.
E no dia seguinte prenderam a senhora e a Eliana?
Eunice Paiva: Fomos juntas, mas lá ficamos separadas. O tratamento foi de pressão psicológica, me perguntaram até se eu queria mandar algum recado pra minha família. Eu fiquei lá 12 dias. Eles me interrogaram e viram claramente que eu não estava envolvida em nenhum tipo de atividade política,J e aí fiquei lá pastando.
Você lembra que tipo de pergunta fizeram?
Eliana Paiva (filha de Rubens): Perguntaram se meu pai era comunista, quem frequentava minha casa, o que meu pai fazia. Eles pegaram um trabalho escolar. Eu tinha uma professora de História meio de esquerda e que pediu pra fazermos um trabalho sobre a invasão da Tchecoslováquia. Eles estavam interessados também no que eu fazia, pensando que poderiam saber o que meu pai fazia. Me chamaram de comunista.
Você ficou, então, 24 horas lá?
Eliana Paiva: Fiquei. Fomos levadas de casa de manhã, em um fusquinha, e quando passamos pelo Maracanã eles encapuzaram a gente. O capuz estava me incomodando e eles trocaram por uma venda. Chegamos no DOI-CODI e ficamos separadas. Colocaram a gente numa espécie de corredor, sentadas. Eu perdi a calma quando comecei a ouvir sons de tortura. Deu pra ver em frente à minha cela que havia um monte de gente encapuzada e com os braços amarrados, dormindo no chão. De manhã, me tiraram da cela, me levaram para uma sala e disseram: “Teu pai fugiu”. Aí pegaram a bolsa de minha mãe e me deram. Depois, me levaram sem capuz em um fusquinha até a Praça Saenz Peña, na Tijuca.
Eles a intimidaram?
Eunice Paiva: Eu não me intimidei muito não. Sabe o que é que eu acho? O Rubens deve ter morrido 24 horas depois de ser preso. Ele era muito cioso de sua dignidade, não ia aguentar nenhum tipo de tortura, era uma pessoa explosiva, deve ter sido isso. Quando eu fui presa ele já estava morto. Eles me seguraram lá o quanto puderam, para ver o que eles iam fazer, qual a resposta que iam dar pra justificar a coisa toda.
Bem, depois que ele morreu começou a odisseia, a longa peregrinação, as perguntas sem respostas até hoje.
Eunice Paiva: Inicialmente, o Exército negou que ele tivesse estado preso no DOI-CODI. Ele não tem túmulo, não sei onde é que está o corpo dele, nada. Só isso já demonstra o que eles fizeram, é um absurdo. Ele não deve ter aguentado certas coisas e deve ter apanhado muito.
Como é que foram os primeiros meses após o desaparecimento?
Eunice Paiva: Depois que ele morreu, eu fiquei sozinha no Rio com cinco filhos. E a minha família toda é de São Paulo. Quando chegou o mês de julho, ainda naquela tensão, resolvi ir para São Paulo. Não entreguei a casa, deixei a empregada tomando conta durante um tempo. Mas eu vi que não tinha mais volta, eu tinha que tocar a vida. Então, me mudei para Santos, porque meu sogro morava lá e me ligava várias vezes me chamando. Meu sogro dizia: “Eu quero que meu filho, quando for solto – ele ainda acreditava que o Rubens estava preso –, encontre a família dele aos meus cuidados. No Rio, as conversas com os amigos eram sempre sobre o Rubens, onde está o corpo, e eu não conseguia explicar. Em Santos, eu pude recuperar um pouco a minha paz. (…)