E o que é medicalização? Embora frequentemente associada ao aumento no consumo de medicamentos, a medicalização vai além disso. Envolve também a apropriação e normatização de aspectos da vida social pela medicina. Um exemplo é a prescrição de benzodiazepínicos para dormir após um dia frenético de trabalho ou o uso de antidepressivos para lidar com o desânimo causado por nossas condições de vida. Em outras palavras, tenta-se tratar com remédios os efeitos de problemas sociais, sem abordar suas causas.

A medicalização se manifesta também quando o médico opta por uma dose de concentrados de vitaminas, por tratamentos homeopáticos ou mesmo quando é prescrita psicoterapia como resposta às frustrações e à falta de perspectivas provocadas pela organização do trabalho em nossa sociedade.
Esse fenômeno, apesar de cada vez mais evidente, é parte constitutiva da medicina na sociedade capitalista. Está profundamente ligado à instituição da medicina como porta-voz de uma visão cientificamente correta de viver. Quando me refiro à medicina, estou falando da maneira como a saúde é produzida em nossa sociedade capitalista, não apenas de uma categoria profissional.
A indústria farmacêutica tem uma motivação evidente e desempenha um papel significativo no incentivo ao uso crescente de medicações. No entanto, antes de simplesmente atribuirmos a ela toda a culpa, façamos uma reflexão.

Como se define o que é patológico? Sob a pretensa neutralidade científica, somos induzidos a aceitar a doença como algo natural, como se existissem regras que definem claramente o que é normal e o que é doença. Não refletimos que esses critérios são determinados historicamente e socialmente.

Por quanto tempo é aceitável que uma pessoa permaneça improdutiva após a morte de um ente querido? Até que ponto o comportamento agitado de uma criança é considerado normal? Questões como essas revelam como as concepções de saúde e doença estão profundamente enraizadas em contextos sociais e culturais específicos, influenciando diretamente as práticas médicas e as expectativas sociais.

O que é considerado saudável ou doente não se baseia apenas em parâmetros científicos, mas está profundamente ligado ao contexto social. Com as crianças, ocorre o mesmo. A definição do que é tolerável em termos de agitação infantil está relacionada às condições sociais e históricas. Em nossa sociedade, o acesso à educação e o tempo que as crianças passam na escola aumentaram significativamente em comparação com dois séculos atrás. Isso exige que as crianças fiquem concentradas por mais tempo em salas de aula cheias de estímulos e distrações. Essas mudanças influenciam diretamente como interpretamos e respondemos ao comportamento infantil.

A forma como uma escola é organizada influencia muito a capacidade de desenvolver o potencial das crianças. Escolas que promovem o desenvolvimento de várias habilidades tendem a engajar um grupo mais amplo de alunos. Diferenças econômicas e sociais afetam a capacidade de engajá-los no aprendizado, e a falta de perspectiva de mudança social através do estudo pode causar falta de entusiasmo e desatenção. Portanto, a atenção de uma criança não é determinada apenas por ela mesma, mas é moldada pelo contexto social e histórico.

Compreender isso é crucial para entendermos como as crianças interagem com seu ambiente escolar e enfrentam os desafios da aprendizagem. Isso não significa que todas as crianças tenham a mesma capacidade de concentração e foco, nem que esse problema não possa afetar o desempenho nas tarefas diárias, causando sofrimento para elas e suas famílias. Apenas sugiro refletir sobre como os diagnósticos são influenciados pelo contexto histórico.

Assim, entendemos que a medicina não opera com padrões de normalidade fixos, mas reflete as contradições da nossa sociedade. Em uma sociedade de classes, os interesses gerais são os da classe dominante. Quando se oferecem soluções objetivas para sofrimentos individuais, busca-se manter a sociedade como está. Isso garante que o trabalhador continue em condições de trabalhar e coloca a responsabilidade do problema no indivíduo.

Se a medicalização parecia ser um problema pontual ou um desvio da prática médica, agora entendemos que ela é uma questão mais complexa e desafiadora – o que pode provocar angústia. A solução não é fácil nem individual, seja você um profissional de saúde ou um usuário do sistema. Com essa reflexão, talvez surja a vontade de questionar profundamente a medicina, que tanto influencia nossas vidas, e reconsiderar a frequência com que buscamos serviços médicos e de saúde.

Então, o que fazer? Apesar do desconforto que essas ideias podem gerar, há mais a ser discutido, especialmente sobre os diagnósticos de doenças na infância e desenvolvimento. Não é verdade que observamos um aumento no número de crianças diagnosticadas como autistas ou hiperativas? Como isso se relaciona com o fenômeno da medicalização?

Convido vocês a continuarmos essa discussão em outros textos por aqui. Até lá!

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Última Atualização: 22/07/2024