A parlamentarose no presidencialismo sem coalizão
por Jean Soares
Estou longe e observo pela notícias o que acontece no país. A cada dia que passa, a sensação é de que o país vai sendo governado, num gerúndio perigoso que resulta do esgotamento de um modelo.
O presidencialismo de coalizão baseia-se na comunicação entre executivo e legislativo para a tomada de decisões. O presidente, eleito por uma maioria popular, executa políticas junto de uma coalizão formada com outros partidos que permitam ao executivo aprovar matérias no Congresso Nacional. Por si só, a fórmula no Brasil sempre teve seus contornos – a dispersão partidária fez com que essas coalizões se formassem com elementos bastante diferentes entre si.
Desde a segunda eleição de Dilma Rouseff essa forma de governo entrou em crise. A ausência de uma coalizão que a sustentasse no governo, por múltiplas razões que não cabem aqui, levaram ao impeachment. A partir daquele momento, o Brasil tem sido governado por um presidencialismo sem coalizão.
Michel Temer, ameaçado de impeachment e com uma aprovação vergonhosa durante todo o mandato, manteve-se porque cedeu poderes de execução ao legislativo, através das emendas parlamentares, que serviram ali de ferramenta para evitar sua deposição. Temer sempre havia sido deputado e não via problemas em ver o congresso governar. Dessa forma, não se pode dizer que ele formou propriamente uma coalizão para governar. Temer possuía uma maioria para não ser deposto, que nutriu cedendo ao congresso poderes que não eram do congresso.
Com seu sucessor, o inominável ser humano que vai a UTIs como quem frequenta uma loja de conveniência, o coisa não mudou muito. Apesar de possuidor de uma maioria parlamentar, aquele inominável ser humano também era um eterno deputado. Não quis governar. Transmitiu seus poderes decisórios sempre que pode, cedeu anéis e dedos para não ser deposto, para não falar nas escolhas de ministros que foram simplesmente catastróficas, como aquele da saúde, suposto especialista em logística, que nem um discurso organizado conseguia entregar.
Chegamos assim, ao governo Lula 3. Um governo de minoria que tem uma base de governo que conta com alicerces de partidos como o MDB e o PSD, elementos ativos no que chamo aqui de parlamentarose. A parlamentarose é um tipo de crise crónica da organização democrática em que os parlamentares, ao invés de se restringirem ao ofício do legislador – elaborar leis e fiscalizar sua execução – passam também eles a querer julgar e executar.
O surgimento da parlamentarose está diretamente ligado ao fim do presidencialismo de coalizão. Na ausência de um governante forte, capaz de executar planos de governos consistentes, a derrocada da coalizão promove o imuscuir de deputados e senadores em assuntos que extravasam seus poderes. Não é um parlamentarismo – porque eles não governam de fato – mas gera uma crise “anímica”. Sem poder apelar para os mecanismos parlamentaristas tradicionais (novas eleições, transmissão do cargo a outro representante do mesmo partido, etc.), um presidente brasileiro se vê no seguinte dilema: ou resiste ao avanço da parlamentarose e é expulso do jogo, como foi o caso de Dilma Rousseff; ou aceita a parlamentarose como uma consequência da manutenção do seu governo – casos do governo Temer, do inominável e do governo Lula.
O exemplo mais recente de parlamentarose é a sugestão de anistia para quem participou dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. As leis democráticas no Brasil são claras: devem ser julgados e, comprovada a culpa, punidos todos os que participaram de mais um dia lastimável da história brasileira. Ao invés de aceitaram o jogo jogado, os deputados, acometidos de parlamentarose, querem mudar as regras do jogo para retirarem as previsíveis punições. Mudar as regras aqui não é legislar – é julgar sua aplicação e questionar as próprias bases daquilo que sustenta os deputados, a Constituição Cidadã. Leis de anistia são formas de “deixa disso”, de “julgar que não é preciso julgar” para livrar quem teve responsabilidades sérias, e nesse caso, trata-se de um flagrante ataque à democracia. Julgar é ofício da justiça e os deputados deveriam somente fiscalizar seu cumprimento, não evitar seu cumprimento.
E como se não bastasse só o querer julgar, a parlamentarose também implica em querer executar.Verdade seja dita, o governo Lula 3 tentou pôr a questão. Buscou questionar as emendas parlamentares – um dos principais sintomas do dito mal crônico – mas até agora conseguiu vitórias locais, sem conseguir uma coalizão que lhe dê a segurança governativa suficiente para o avanço de grandes projetos. A reforma tributária e as recentes mudanças fiscais, como a isenção do imposto de renda para quem ganha menos de 5 mil por mês são feitos importantes, mas que não promoveram uma execução de um plano de mudança de país.
Para mudar, será necessário combater a parlamentarose com uma maioria parlamentar democrática, o que ressuscitaria a tal coalizão, hoje bastante frágil com o apoio de quem um dia depôs um governo do PT(e dou nomes: o MDB e do PSD, por exemplo) . Essa maioria só pode ser alcançada através de eleições populares em cenário positivo para o governo. Isso dependerá substancialmente do que acontecerá neste próximo ano e meio. Conseguirão os partidos do arco democrático das forças aprovar medidas de impacto para a vida do povo brasileiro? Conseguirão levar à cabo um plano de melhorias realmente popular? Conseguirão comunicar isso e criar uma onda capaz de eleger um governante consciente do seu papel democrático? Haverá uma saída para tratar a parlamentarose no Brasil?
Jean D. Soares é doutor em filosofia pela PUC-Rio
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