A morte de Silvio Santos foi o assunto da semana: visionário, talentoso, grande mestre da TV brasileira e outros adjetivos que lhe foram atribuídos, e com certo merecimento, são legítimos.
O que para mim se mostra problemático não é a comoção geral pela morte de um grande ícone para tanta gente, mas a tendência à indulgência exacerbada dessas pessoas ao apresentador.
Se, na cultura brasileira, quem morre automaticamente vira santo – e as pessoas esquecem de todas as bizarrices que o falecido já fez em vida – uma reflexão minimamente adequada concluiria que é inevitável que sejamos injustos com todas as pessoas que Silvio ofendeu e machucou.
Não estou aqui para desmerecer a dor alheia, cultuar a morte ou condenar postumamente outro ser humano, mas é preciso dizer: ser talentoso e admirável não retira de Silvio Santos os seus preconceitos e ofensas gratuitas.
Preta Gil, uma de suas vítimas, descreve em sua autobiografia que foi chamada de “gorda e feia” durante uma gravação, da qual a cantora saiu aos prantos.
Silvio também já se declarou “misógino” ao lhe ser cobrada uma postura decente para com as mulheres. “Não sei o que é misógino, mas sim, EU SOU MISÓGINO”, disse, em rede nacional. “Ele era de uma outra época”, alguém dirá, mas não podemos confundir senilidade com falta de respeito e amor ao próximo.
Preta não foi a única vítima: há, por exemplo, outro vídeo onde o apresentador questiona uma menina negra: “Você quer ser famosa com esse cabelo?”
Se uma mulher adulta como Preta Gil saiu do estúdio aos prantos, como imaginar o que se passou na cabeça dessa criança ao sofrer uma ofensa racista na TV?
Não, Silvio Santos não era senil, ele só sabia que ser canalha era um jeito de ganhar dinheiro.
Não se tratava de um herói, mas de mais um homem privilegiado usando seu privilégio para ofender e humilhar aos outros. Lamento a morte de Silvio como lamentaria a morte de qualquer ser humano, meu semelhante, mas não me furto a lembrar (e a lembrar a todos vocês) o que o comportamento dele, um homem influente, causou nas pessoas que seguem vivas. Isto é, ao fim e ao cabo, uma questão de justiça.