
artigo publicado em 13 de junho de 2024 – Sugestão de Luciano Fazio
por Stephen M. Walt
O ministro das Relações Exteriores francês Charles-Maurice de Talleyrand (1754-1838) foi um hábil sobrevivente político, que conseguiu servir ao governo revolucionário francês, a Napoleão Bonaparte e à Restauração Bourbon no pós-guerra. Foi um estadista sutil e talentoso, lembrado hoje principalmente por seu sábio conselho a seus colegas diplomatas: “Acima de tudo, nada de zelo em excesso.” Palavras realmente sábias: excesso de zelo, rigidez e moralização exagerada costumam ser obstáculos a qualquer esforço para encontrar soluções eficazes para questões internacionais difíceis.
Infelizmente, líderes políticos rotineiramente enquadram disputas com outros países em termos fortemente moralistas, transformando conflitos de interesse tangíveis mas limitados em disputas mais amplas sobre princípios fundamentais. Como argumentou Abigail S. Post, da Anderson University, em um importante artigo publicado no ano passado na revista International Security, líderes envolvidos em disputas internacionais usam linguagem moral para mobilizar apoio interno e externo e reforçar sua posição de barganha diante dos adversários. Ao fazer isso, desacordos sobre questões potencialmente divisíveis (como um território em disputa) se transformam em conflitos de soma zero entre reivindicações morais concorrentes. Infelizmente, princípios morais são difíceis de abandonar ou flexibilizar sem atrair acusações de hipocrisia ou de traição. Uma vez que governos utilizam argumentos morais para justificar suas posições, chegar a um acordo torna-se muito mais difícil, mesmo quando isso seria do interesse de todos.
O artigo de Post ilustrou essa dinâmica com um estudo de caso revelador sobre a disputa das Ilhas Malvinas/Falklands entre Argentina e Grã-Bretanha. Para sustentar sua reivindicação, cada lado invocou normas morais conhecidas. A Argentina baseou-se na norma da soberania territorial, e seu argumento era simples: a Grã-Bretanha havia tomado as ilhas ilegalmente em 1833 e, portanto, deveria devolvê-las, ponto final. Os britânicos responderam invocando outro princípio moral: a norma da autodeterminação. Para eles, não importava como haviam adquirido as ilhas; enquanto a maioria dos habitantes quisesse permanecer parte do Reino Unido, sua vontade deveria prevalecer.
Uma vez estabelecidas essas duas posições, o compromisso tornou-se praticamente impossível. Apesar do valor econômico e estratégico limitado das ilhas, retomar o controle tornou-se uma questão política de peso na Argentina. Mas nenhum governo britânico poderia cedê-las sem parecer abandonar cidadãos britânicos que desejavam permanecer sob o domínio do Reino Unido. Dadas essas posições enraizadas, um confronto militar era provavelmente inevitável.
Em resumo: reivindicações morais transformam disputas divisíveis e potencialmente solucionáveis em conflitos indivisíveis e muito mais difíceis de tratar. Entre outras coisas, essa constatação sugere uma importante revisão no chamado modelo de barganha da guerra. Esse modelo vê a maioria dos conflitos como disputas sobre questões divisíveis e argumenta que, racionalmente, os Estados poderiam chegar a soluções mutuamente aceitáveis se tivessem informação perfeita sobre as capacidades e a determinação um do outro e pudessem superar o “problema do compromisso” (isto é, a incapacidade de garantir que um acordo será cumprido). As guerras ocorrem porque, geralmente, essa informação não está disponível e os Estados têm incentivos para distorcê-la, tornando a luta o único meio de determinar quem deve ficar com qual parte da disputa. Os estudiosos reconhecem que guerras também podem surgir de questões indivisíveis, onde o compromisso é impossível, mas presumem que sejam relativamente raras. A pesquisa de Post sugere que enquadrar disputas em termos altamente moralistas transforma questões divisíveis em indivisíveis, dificultando soluções e tornando a guerra mais provável.
Exemplos desse problema dominam as manchetes de hoje. O conflito atual sobre Taiwan lembra a disputa das Malvinas em certos aspectos: a China reivindica Taiwan como seu território soberano por direito histórico e insiste que os eventos que a deixaram fora de seu controle devem ser revertidos. Dessa perspectiva, qualquer coisa aquém da plena reintegração de Taiwan à soberania chinesa é inaceitável. Em contraste, os defensores da autonomia taiwanesa argumentam que os 24 milhões de habitantes da ilha querem governar a si mesmos e rejeitam ser governados pelo Partido Comunista Chinês. Nesse ponto de vista, devolver Taiwan ao controle chinês violaria os direitos políticos de seu povo. O compromisso é difícil porque ambas as reivindicações morais têm alguma validade, e qualquer resultado aquém da posição declarada de cada lado será imediatamente visto como traição a um princípio político fundamental.
Agora, considere como a guerra na Ucrânia é enquadrada por cada lado. Ela surgiu de um conjunto de desacordos concretos e tangíveis que eram, em tese, negociáveis e passíveis de compromisso. Essas questões incluíam a possível entrada da Ucrânia na OTAN; seu grau de integração econômica, política e de segurança com a Rússia e a União Europeia; o status das minorias russófonas na Ucrânia; direitos de base para a Frota russa do Mar Negro; o suposto papel de grupos alegadamente neonazistas na Ucrânia; entre outros. Questões difíceis, sem dúvida, mas que poderiam ter sido resolvidas de modo a satisfazer interesses centrais de cada parte e evitar uma guerra brutal e custosa.
Hoje, porém, o conflito é amplamente descrito por cada lado como um choque de princípios morais concorrentes. Para a Ucrânia e o Ocidente, o que está em jogo é a norma pós-Segunda Guerra Mundial contra a conquista, a credibilidade da “ordem baseada em regras” e a defesa de uma democracia em luta contra uma ditadura implacável. Para os ucranianos, trata-se de defender a nação e seu território sagrado; para parte dos apoiadores ocidentais de Kiev, ajudar a vitória ucraniana é necessário para sustentar os princípios morais nos quais a ordem ocidental supostamente se baseia.
A justificativa da Rússia, por sua vez, recorre cada vez mais a alegações morais, como a acusação de que a OTAN teria quebrado a promessa de não se expandir além da Alemanha, a ideia de que existe uma profunda unidade cultural entre russos e ucranianos que precisa ser preservada, ou a insistência de que proteger a cultura russa exige defender os direitos dos falantes de russo na Ucrânia e garantir a permanente “desnazificação” do país. Não é preciso aceitar nenhuma dessas afirmações para reconhecer que vão além de interesses estratégicos estreitos: o presidente Vladimir Putin e seus aliados enquadram o conflito como essencial para preservar a identidade nacional russa (e sua segurança) diante de pressões externas hostis. Retoricamente, ao menos, é muito mais do que uma disputa sobre direitos de minorias no Donbass ou o alinhamento geopolítico da Ucrânia.
Infelizmente, esse enquadramento moral torna muito mais difícil chegar a um acordo de paz, porque qualquer coisa aquém da vitória total inevitavelmente provoca forte reação daqueles que temem que valores essenciais estejam sendo sacrificados. Se os Estados Unidos ou a OTAN pressionassem a Ucrânia a aceitar um acordo sem vitória total, enfrentariam um coro de críticas de quem acredita que apenas uma derrota humilhante da Rússia e a entrada da Ucrânia na OTAN atenderiam às exigências da justiça. Se o presidente Volodymyr Zelensky tentasse negociar um cessar-fogo hoje, poderia até ser derrubado por setores mais duros que querem continuar lutando. Putin enfrenta menos restrições internas, mas ele também poderia evitar um compromisso que contradissesse as justificativas morais usadas para sustentar a guerra e garantir apoio popular.
E há Gaza, o mais recente episódio infeliz do longo conflito entre judeus e árabes que começou com a chegada dos colonos sionistas à Palestina no fim do século XIX. Assim como na Ucrânia, há inúmeras questões concretas nesse conflito, e repetidas tentativas de solução foram feitas (bem antes mesmo da fundação de Israel). Infelizmente, as posições de cada lado acabam se apoiando em reivindicações morais concorrentes sobre o território entre o rio e o mar — reivindicações que combinam narrativas históricas parciais, crenças religiosas e a firme convicção de que o outro lado cometeu inúmeros crimes no passado e continua a cometê-los hoje. Essas reivindicações inspiram respostas extremas tanto do Hamas quanto de Israel, e tornam muito mais difícil conceber uma solução que satisfaça as legítimas aspirações nacionais de judeus israelenses e árabes palestinos.
Os americanos são tão suscetíveis a esse problema quanto qualquer outro povo. Realistas como Hans Morgenthau e George Kennan lamentaram a tendência dos líderes dos EUA de enquadrar cada rivalidade em termos morais, o que viam corretamente como um grande obstáculo a uma política externa mais eficaz. A linguagem moral pode ser útil para mobilizar cidadãos e obter apoio, mas faz os EUA parecerem hipócritas sempre que agem de outra forma — o que acontece com bastante frequência. Também dificulta que autoridades americanas negociem eficazmente com adversários potenciais, seja porque se recusam a manter relações diplomáticas com eles, seja porque até mesmo um acordo mutuamente benéfico com um regime considerado “maligno” é visto como covardia e como falha em sustentar princípios morais centrais.
Mas não nos enganemos: no fim, os conflitos geralmente se resolvem em acordos confusos e moralmente imperfeitos. Mesmo após vitórias esmagadoras, os vencedores frequentemente aceitam menos do que suas justificativas morais exigiriam. Os Estados Unidos, por exemplo, exigiram e obtiveram “rendição incondicional” na Segunda Guerra Mundial, mas toleraram (e em alguns casos apoiaram ativamente) a volta de ex-nazistas à vida política. Fizeram julgamentos de crimes de guerra no Japão e executaram alguns líderes, mas mantiveram o imperador Hirohito no trono. Não ficaram satisfeitos ao ver a Cortina de Ferro descer sobre a Europa Oriental, mas entenderam que aceitar a dominação soviética naquela região era o preço da paz no pós-guerra.
Os conflitos em Gaza e na Ucrânia terminarão com acordos que não satisfarão ninguém por completo. Nenhuma das partes obterá tudo o que deseja, e as declarações morais estridentes feitas por líderes e comentaristas durante essas guerras soarão vazias. Quanto mais tempo os participantes se apegarem a elas, mais difícil será encerrar a carnificina. Se Talleyrand estivesse vivo hoje, suspeito que diria: “Eu avisei.”
Stephen M. Walt é colunista da Foreign Policy e professor Robert e Renée Belfer de Relações Internacionais em Harvard University.
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