A Procuradoria-Geral da República denunciou o ex-presidente da República Jair Bolsonaro e outros envolvidos pelos crimes de organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

O ex-presidente da República Jair Bolsonaro liderou, nos termos da denúncia, o núcleo da trama golpista e, ao proceder ao início da execução de uma tentativa de ruptura com a democracia brasileira, valeu-se da elaboração de uma minuta de decreto de estado de defesa. Nos termos do documento formalizador, o ex-presidente da República decretaria estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral com o objetivo de garantir a preservação ou, conforme ali constante, “o pronto restabelecimento da lisura e correção” do processo eleitoral presidencial do ano de 2022.

Com efeito, há, desde a modernidade, uma tentativa de conferir tratamento jurídico às hipóteses de suspensão de direitos em situações de emergência. Exemplificativamente, o artigo 48 da Constituição de Weimar permitia ao presidente do Reich adotar, sem o aval do Legislativo, medidas que julgasse necessárias para a restituição da ordem social. O Decreto Emergencial para a Defesa contra o Comunismo, do Terceiro Reich, foi fundamentado no citado dispositivo. Ademais, rememoremos os Atos Institucionais da ditadura de 1964, concebidos com o mesmo propósito: valer-se do Direito para instrumentalizar a exceção.

A ascensão dos Estados autoritários do século XX ocorreu por meio de declarações jurídicas. Para Ernst Fraenkel, a emergência do por ele intitulado “Estado dual” pressupunha a coexistência de Estado-norma e de um Estado de prerrogativas: de um lado, normas relativas às relações privadas e ao sistema de justiça visavam, essencialmente, garantir previsibilidade e continuidade do sistema capitalista, ao passo que, no campo dos direitos fundamentais, prevalecia a exceção pela suspensão do Direito e da Constituição.

Os Estados autoritários do século XX valem-se, nesse contexto, de sedutoras narrativas de combate à figura do inimigo e de pretensa salvaguarda de determinados valores, isso tudo por meio de declarações jurídicas com o objetivo de conferir aparência de legitimidade. Não por acaso, o ex-presidente da República valeu-se da elaboração de uma minuta de decreto de estado de defesa. Objetivava-se uma declaração jurídica, a qual, por uma obviedade, não seria capaz de legitimar o golpe de Estado old-fashioned.

Uma das razões pelas quais Bolsonaro falhou foi tentar criar um modelo autoritário que já não é mais o preponderante no mundo: via decreto de exceção. Após a Segunda Guerra Mundial, em especial, o autoritarismo passou a combater a ideia de que ele seria ligado ao nazismo e ao fascismo. Nesse contexto nasceu o estratagema do novo autoritarismo: nunca se declarar como tal. É o que vislumbramos, exemplificativamente, nos Estados Unidos de Donald Trump, produtor de medidas de exceção que esvaziam de sentido dos direitos e da Constituição aos poucos, de maneira dispersa no sistema.

A denúncia da Procuradoria-Geral da República mostra um golpe em vários atos, uma peça na qual o 8 de Janeiro foi o ato final. Houve ações em frente aos quartéis, ataque à Polícia Federal, bloqueio de estradas, tentativa de uma unidade do Exército composta de oficiais superiores de matar o presidente eleito, tentativa de terrorismo em aeroporto e, por fim, a invasão das sedes dos Três Poderes. As provas demonstram, cabal e abundantemente, que a intenção era convocar os militares para um golpe de Estado de forma consciente e articulada.

Pela primeira vez na nossa história, militares, ministros, presidente da República e outros servidores públicos da alta administração do Estado são denunciados por tentativa de golpe de Estado, isso mediante um processo judicial baseado­ na lei e de forma democrática. A finalidade não deve ser estritamente punir. Precisamos deixar claro para as próximas gerações que a sociedade brasileira não aceita ataques violentos à Constituição, à democracia e aos direitos.

O autoritarismo deixou de ser a manifestação de um Estado de exceção em sua acepção clássica para dar lugar às medidas de exceção associadas à produção fractal e líquida. Ou seja, deparamo-nos com um Estado de exceção que se manifesta por medidas de exceção, não por governos de exceção. Para a nossa sorte, o ex-presidente da República falhou em adotar uma estratégia golpista superada. Entretanto, não podemos mais contar com a sorte quando estão em jogo as próprias bases democráticas. •

Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘À moda antiga’

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Last Update: 26/02/2025