
Tribunal de exceção, a Meta (e não o STF) matou a conta de Jones Manoel, por Ion de Andrade
As Big Techs vêm resistindo duramente às decisões judiciais (que, no entanto, ocorrem sob o devido processo legal, são transparentes e garantem o direito de defesa dos réus) que cancelam contas de usuários de suas plataformas por motivos diversos.
Esse direito público do Poder Judiciário, inscrito na Constituição Federal, vem sendo questionado pela extrema direita e pelas próprias big techs em nome de uma suposta liberdade de expressão que, no entanto, elas próprias não respeitam.
Ora, o desrespeito perpetrado por elas à liberdade de expressão dos seus usuários é, ao contrário, privado em vez de público, opaco em lugar de transparente e estrangeiro em lugar de brasileiro, contrariamente ao que ocorre nas decisões judiciais, que regulam essa liberdade em função dos parâmetros legais brasileiros – como por exemplo, a impossibilidade do seu uso para a incitação ao crime.
De fato, as decisões de cancelamento de contas pelas big techs, frequentemente, com base em critérios desconhecidos, não permitem o direito de defesa dos usuários e cursam sem transparência.
O que terá sido mais relevante no silenciamento da conta de Jones Manoel que tinha mais de um milhão de seguidores? O fato de ser negro? O problema ideológico? Não sabemos. Essas motivações, entretanto, no Brasil não são suficientes para silenciar um cidadão e desrespeitam frontalmente a liberdade de expressão.
Isso remete a duas questões fundamentais:
- A primeira é que, em lugar de defender a liberdade de expressão, o que as big techs querem, de fato, é substituir o Estado – no caso, a Justiça -, para converter-se num tribunal de exceção extraterritorial, em que as decisões são tomadas de forma unilateral, sem transparência e sem direito de defesa, o que lhes dá o poder (autoatribuído) de destruir patrimônios de comunicação e reputações de pessoas que se inscreveram nas suas plataforma e as utilizam de forma legítima nos limites legais da liberdade de expressão;
- A segunda, como bem ilustra o caso Jones Manoel, é a necessidade de que as big techs entendam que, além de respeitar as ordens judiciais, (e estamos quase lá) elas têm também que respeitar as próprias leis brasileiras.
As big techs criaram espaços públicos de comunicação e não podem nem descumprir ordens judiciais, nem desrespeitar as leis cancelando contas de usuários ao seu bel-prazer por racismo, sexismo, gordofobia, xenofobia, ideologia ou maldade. Nesses casos, o motivo não revelado poderia ser criminoso e tem que ser conhecido.
Ora, é óbvio que ao flagrar um possível crime de ódio a Meta tem a obrigação de fechar a conta, (o que resiste em fazer), entretanto, mesmo isso, obviamente, deverá ser feito sem prejuízo da informação do motivo ao usuário para que, discordando, possa recorrer da decisão inclusive judicialmente, afinal, estamos numa democracia.
Vamos imaginar que o sistema bancário pudesse, nas agências dos bairros nobres do Brasil, a seu critério, excluir contas bancárias de negros… Onde estaríamos?
O caso Jones Manoel mostra que as big techs não pretendem defender qualquer liberdade de expressão, mas sim se constituir como o Tribunal de Exceção de um novo Estado colonial.
É preciso que fique claro para elas que a exclusão de contas de usuários brasileiros deve estar amparada na lei, como nos casos de fakenews, não podendo sob qualquer hipótese serem arbitrárias, pois a motivação não revelada pela Meta poderá também ser criminosa.
O Estado de direito no Brasil tem sobre as big techs o direito legal de exigir que feche as contas de criminosos como tem também o direito de não permitir que as contas de cidadãos honestos sejam fechadas o que nos dois casos se deve à defesa da liberdade de expressão como a entendemos no Brasil, é direito dos brasileiros e deve ser respeitado pelas big techs.
Jones Manoel, a quem eu pessoalmente respeito e admiro a trajetória, embora tenha pontos de vista diferentes dos dele em questões relevantes, deve ter a sua liberdade de expressão assegurada.
Na justiça é importante que peça uma indenização salgada, afinal, para além da lei, essa é uma lógica que as big techs entendem muito bem e poderá proteger outros usuários.
Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia
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