E comum que, quando a mídia, sobretudo a de maior alcance popular, como o programa Fantástico, da TV Globo, fala sobre algum transtorno psiquiátrico, parte do público se identifique com os sintomas descritos.
“Quando um novo transtorno é apresentado ao público, passamos uma semana respondendo a telefonemas de pessoas que acreditam sofrer daquela doença”, revela Juliana Belo Diniz, doutora em psiquiatria pela Universidade de São Paulo e especialista em pesquisa clínica por Harvard, em O Que os Psiquiatras Não Te Contam.
Se fenômenos que, antes do programa, não eram trazidos como queixas passam a sê-lo é porque, ao ouvir a reportagem, as pessoas passam a entender que aquilo que sentem talvez seja tratável. Ocorre assim o que a autora chama de medicalização da vida cotidiana, ou seja, o aumento no consumo de remédios e tratamentos ineficazes.
“Essa medicalização é consequência de muitos fatores, que vão desde questões culturais – como a forma de entender o sofrimento – até questões sociais e econômicas, como a demanda por produtividade e a influência de agentes econômicos”, diz ela, em entrevista a CartaCapital. Embora a indústria farmacêutica seja parte dessa engrenagem, ela não atua isoladamente.
Juliana aponta um aspecto menos evidente, mas que potencializa o fenômeno da medicalização do sofrimento: a precarização das relações de trabalho dentro do sistema de saúde. Profissionais exauridos que atendem de quatro a cinco pacientes por hora, e que sabem que outras formas de terapia são restritas, tendem a medicar mais do que profissionais que contam com melhores condições de trabalho.

O Que os Psiquiatras
Não Te Contam
Juliana Belo Diniz. Fósforo
(256 págs., 89,90 reais)
Com linguagem clara e objetiva, a autora desfaz lugares-comuns sobre depressão, ansiedade, déficit de atenção com hiperatividade etc., mostrando que esses transtornos não são apenas doenças do cérebro. Ela discorre ainda sobre as polêmicas do efeito placebo, a descoberta dos antipsicóticoss e antidepressivos e do estouro do Prozac, no fim da década de 1990.
A pesquisadora defende que as histórias contadas pelos pacientes, assim como a confiança que eles têm no médico, são elementos centrais da psiquiatria. “Tornar-se confiável é mais desafiador do que decorar protocolos de tratamento”, diz, lembrando que acasos, encontros e escolhas difíceis fazem parte da clínica.
Mesmo com a esperança de que, um dia, o estudo do cérebro avance a ponto de serem desenvolvidas intervenções mais sofisticadas e eficazes, Juliana lembra que as doenças mentais sempre guardarão algo que vai além da compreensão química.
“Nem sempre os remédios serão essenciais. Quando o sofrimento for muito agudo, os remédios vão ser bons coadjuvantes, mas não os protagonistas”, diz. “Muitos psiquiatras não contam isso porque é mais simples alimentar ilusões do que revelar que os tratamentos psiquiátricos com remédios são muito limitados.”
Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 18 milhões de brasileiros sofrem com transtornos de ansiedade. O País, de acordo com um levantamento da Organização das Nações Unidas, lidera nos casos de ansiedade no mundo.
A autora diz que, apesar de questionar a medicina, seu livro não tem repercutido negativamente entre seus pares: “Como a discussão dos chamados determinantes sociais dos transtornos foi incorporada à psiquiatria hegemônica, a recepção, mesmo entre os mais apegados às explicações biológicas, acaba sendo pelo menos parcialmente positiva”.
Seu desejo, diz, é contribuir para que encontremos formas sustentáveis de lidar com a angústia e o sofrimento – e isso significa também ter informações claras. •
Vitrine
Por Ana Paula Sousa
Em Nada Nessa Magia (188 págs., 59 reais), Suzanne Doppelt parte do quadro Les Bulles de Savon (1734), de Jean-Siméon Chardin, para refletir sobre a arte e a criação. A obra chega em edição bilíngue pela Syrinx, que se define como uma editora dedicada a formar uma “biblioteca de invenção”.
Clássico da literatura para a primeira infância, Uma Lagarta Muito Comilona (24 págs., 69,90 reais), de Eric Carle, ganha uma edição encantadora pela Companhia das Letrinhas. No livro, escrito em 1969, a aventura da lagarta esfomeada é narrada por meio da relação entre palavra, imagem e um inventivo projeto gráfico.
Em Ao Lado de Lina, Marcelo Ferraz (WWF, 304 págs., 94,90 reais) refaz, por meio de textos de difrentes épocas, a trajetória de Lina Bo Bardi (1914–1992), arquiteta com quem teve uma longa parceria e com quem trabalhou, ainda estudante, no histórico projeto do Sesc Pompeia.
Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A medicalização do sofrimento’