A Margem Equatorial e os compromissos internacionais do Brasil

por Jânia Saldanha[1]

A recente Ação Civil Pública (ACP) [2] ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) do Pará contra a União Federal e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) lança um importante alerta acerca do leilão de blocos na Margem Equatorial. Por meio da referida ação, o MPF busca a suspensão do 5º Ciclo da Oferta Permanente de Concessão (OPC) ou, alternativamente, a exclusão dos 47 blocos situados na Bacia Sedimentar da Foz do Amazonas. A iniciativa levanta preocupações jurídicas cruciais quanto às implicações socioambientais e ao comprometimento do Brasil com tratados internacionais ratificados e internalizados no ordenamento jurídico nacional.

Um dos pontos centrais da demanda refere-se à evidente violação da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com esse tratado internacional e conforme argumenta o MPF, a ausência de consulta prévia, livre e informada aos povos e comunidades tradicionais que habitam a região costeira da Foz do Amazonas, ainda na fase de planejamento e antes de qualquer medida de licitação ou concessão, configura desrespeito ao direito humano desses grupos de participar efetivamente das decisões estatais que afetam diretamente seus territórios e modos de vida. Nesse contexto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CrIDH), em diversas decisões[3] proferidas contra Estados das Américas, tem reiterado que a consulta prévia é instrumento essencial para garantir o diálogo intercultural e o direito à autodeterminação dos povos afetados.

Além disso, no que tange à exigência de estudos prévios de impacto ambiental, a CrIDH, na emblemática Opinião Consultiva 23/2017[4], solicitada pela Colômbia e relativa à relação entre meio ambiente e direitos humanos, estabeleceu que tais estudos devem ser concluídos “de maneira prévia à realização da atividade ou antes da concessão de permissões necessárias para a sua realização”[5]. Segundo o mesmo pronunciamento, não se confere aos Estados margem de apreciação: “devem garantir que não se empreenda nenhuma atividade relacionada com a execução do projeto até que o estudo de impacto ambiental seja aprovado pela autoridade estatal competente”.

Outro ponto sensível levantado pelo MPF diz respeito à ausência de um “Estudo de Impacto Climático” para os blocos localizados na Foz do Amazonas, elemento considerado incompatível com os esforços globais de descarbonização e com os compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris de 2015[6]. Nesse sentido, o MPF sustenta que essa omissão é “cientificamente insustentável, legalmente indefensável e moralmente injustificável” diante da emergência climática global. Ressalte-se que as metas do Acordo de Paris, especialmente o de limitar o aumento da temperatura global a 1,5ºC, possuem, no Brasil, natureza jurídica supralegal, por estarem diretamente relacionados à proteção de direitos humanos. Assim, a continuidade da exploração na região, sem um plano estratégico governamental robusto, configura uma violação direta aos compromissos climáticos nacionais e internacionais.

Ademais, a presença de três grandes empresas transnacionais interessadas em implementar projetos de exploração e produção de petróleo na Margem Equatorial faz lembrar a urgência em preencher  o vácuo legislativo no País quanto à responsabilização das corporações por violações de direitos humanos decorrentes de suas atividades produtivas e em colocar o Brasil ao lado de outros Países que já o fizeram. A expansão da fronteira exploratória nessa região reforça a lógica do extrativismo — expressão de uma colonialidade persistente — e representa ameaça concreta à curva de redução do uso de fontes não renováveis no Brasil. Este cenário contradiz os reiterados alertas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC), que indicam a necessidade urgente de diminuição drástica e acelerada da dependência de combustíveis fósseis. A preponderância dos interesses econômicos sobre a preservação ambiental confirma que a era do Antropoceno foi, tragicamente, superada pela do Capitaloceno.[7]

A continuidade dessa lógica evoca paralelos com casos emblemáticos da exploração de petróleo e gás no cenário internacional, cujas consequências foram catastróficas tanto para o meio ambiente quanto para as populações locais. É o caso do litígio entre a Chevron e o Equador[8], no qual os impactos socioambientais da atividade petrolífera geraram disputas judiciais prolongadas, bem como o caso UNOCAL/TOTAL[9], em Mianmar (antiga Birmânia), marcado por graves denúncias de violações de direitos humanos associadas a projetos de gás. Este último, inclusive, deu ensejo à aplicação do princípio da jurisdição universal, visando responsabilizar o Estado birmanês pelas violações cometidas contra os trabalhadores envolvidos nos projetos. Esses precedentes internacionais reforçam a necessidade de o Brasil adotar uma postura de máxima precaução, a fim de evitar a repetição de tragédias socioambientais e o agravamento de conflitos, bem como antecipar riscos futuros.

É urgente, portanto, que o Brasil cumpra de forma integral os compromissos internacionais que assumiu. Esse é o caminho para demonstrar coerência entre o discurso ambiental e a prática governamental. Do ponto de vista legal, o País tem como um de seus objetivos fundamentais a proteção do meio ambiente e a mitigação das emissões de gases de efeito estufa, conforme prevê a Lei nº 9.478/1997[10], que disciplina a política energética nacional. Contudo, ainda que se busque financiamento para a transição energética, as fronteiras terrestre e marítima permanecem amplamente abertas à exploração por parte de agentes privados. Tal contradição, segundo o MPF, representa uma “verdadeira falácia” que permeia o atual projeto da Margem Equatorial.

Por fim, o recente leilão promovido pela ANP relativamente a Margem Equatorial impõe um teste decisivo ao compromisso do Brasil com a sustentabilidade e com o direito internacional. A voz dos povos tradicionais, assim como as evidências científicas sobre os impactos climáticos, não podem ser relegadas em nome de um modelo de desenvolvimento insustentável. O Brasil tem, agora, no ano em que sedia a COP 30,  a oportunidade de demonstrar liderança ambiental, assegurando que a transição energética seja justa, equitativa e comprometida com os direitos humanos, com a integridade dos ecossistemas amazônicos e com o futuro do Planeta. O tempo é agora.


[1] Livre Docente em Direito Internacional do IRI/USP. Doutora em Direito Público. Professora do PPG em Direito da Escola de Direito da UNISINOS. Advogada.

[2] Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2025/acao-mpf-suspensao-leilao-blocos-petroleo-foz-amazonas.pdf. Acesso em 21 jun. 2025.

[3] Por exemplo: Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_172_esp.pdf. Acesso em 21 jun. 2025

[4] Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso 21 jun 2025.

[5] Parágrafo 162.

[6] Promulgado pelo Decreto 9.073/2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9073.htm. Acesso em 21 jun. 2025.

[7] MOORE, Jason. Antropoceno ou Capitaloceno? Natureza, história e crise do capitalismo. Elefante Editora, versão e-book.

[8] MARTIN-CHENUT, Kathia; PERRUSO, Camila. El caso Chevron-Texaco y el aporte de los proyectos de convención sobre crímenes ecológicos y ecocidio a la responsabilidad penal de las empresas transnacionales. In: RIVERA, Cantú. Derechos Humanos y Empresas: Reflexiones desde América Latina. San José: Instituto Interamericano de derechos humanos, 2017

[9] FRYDMAN, Benoit. Translating Unocal: The Liability of Transnational Corporations for Human Rights Violations. Disponível em: https://www.academia.edu/81138099/Translating_Unocal_The_Liability_of_Transnational_Corporations_for_Human_Rights_Violations. Acesso 20 jun.2025.

[10] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9478.htm. Acesso em 20 jun.2025.

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Last Update: 25/06/2025