Hospício É Deus, mas é também, na descrição de Maura Lopes Cançado ­(1929–1993), demônio: “Estou no hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante”.

Escrito nos cinco meses nos quais a autora esteve internada no Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, no Rio, entre 1959 e 1960, Hospício É Deus ganhou, no fim do ano passado, uma bem-vinda reedição. No novo volume, os diários vêm acompanhados de dois textos que elucidam tanto sua sagapessoal quanto sua trajetória literária.

No primeiro deles, Natalia Timerman, escritora e psiquiatra, explora os sentidos da “escrita fronteiriça” de Maura, cuja credibilidade foi maculada por ­suas ações. “Maura”, diz ela, “escreve dentro e fora da loucura.”

No outro, o jornalista Mauricio Meirelles recupera a conturbada biografia da autora, que inclui 19 internações psiquiátricas, tentativas de suicídio e o assassinato de uma interna na Clínica de Saúde Dr. Eiras, em Botafogo, em 1972.

“Meus atos me surpreendem tanto quanto a outra pessoa”, antecipava ela, na década anterior. “Meu diário é o que há de mais importante para mim. Levanto-me da cama para escrever a qualquer hora, escrevo páginas e páginas.”

Dessas páginas emergem uma escritora dotada de talento, e tomada pelo medo de perder-se de si, e uma personagem fascinante, mas nem sempre confiável, e muitas vezes agressiva.

Nascida numa fazenda no interior de Minas Gerais, filha de um pai abastado e violento, sempre com um revólver à mão, e de uma mãe também rica, mas “modesta, generosa e quieta”, Maura relata sua infância pelas lentes do presente, ou seja, procurando na criança que foi as pistas de seus transtornos.

Desde bebê ela teve várias doenças e, em nome da cura de uma delas, vestiram-na só de azul até os 7 anos, como pagamento de uma promessa. “Prestaram atenção em mim exageradamente. De certa forma, isso me trouxe grande solidão (…) Encaravam-me como a uma menina caprichosa, mas a verdade é que já era uma candidata aos hospícios onde vim parar.”

Os medos, a presença de um Deus ameaçador e a violação sexual sofrida na infância são alguns dos elementos por ela recuperados. Maura também faz elogios à própria beleza e inteligência e diz: “Cresci na ilusão de que o dinheiro me tornava superior”.

Não é desimportante o fato de, em Hospício É Deus, a experiência da loucura ser narrada por uma mulher rica, bonita e com boas relações. Os diários são, nesse sentido, um contraponto social ao Diário do Hospício e o Cemitério dos Vivos (Companhia das Letras, 2017), fruto da passagem de Lima Barreto (1881–1922) pelo Hospital Nacional dos Alienados, no Rio.

Barreto era negro, pobre e alcoólatra e a isso atribui sua sina. Maura não era nada disso, mas, no ato de descrever e inquirir a própria loucura, aproxima-se dele.

Ambos, a partir de suas vivências, enquadram a loucura – assim como o faz a sociologia – não só como aquilo que a psiquiatria diagnostica, mas como uma experiência social que diz tanto sobre o “louco” quanto sobre a sociedade que assim o classifica. “Parece-me que toda a humanidade é responsável pela doença mental de cada indivíduo”, diz Maura.

Hospício é Deus. Maura Lopes Cançado. Companhia das Letras (288 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon

Ela dialoga, indiretamente, com ­Michel Foucault (1926–1984), que, em História da Loucura (Perspectiva, 2019), mostra a evolução dos discursos sobre a loucura, atrelando-os à questão da disciplina e do controle – que Maura sente no corpo e na alma. A autora faz ainda um inventário de diagnósticos e tratamentos testados e contraditos na primeira metade do século XX.

Diagnosticada como portadora de personalidade psicopática, ela se reconhecia na descrição da esquizofrenia, e se perguntava: “Serei louca? Se não o sou, por que não me comporto como as outras pessoas?” E não era apenas para si mesma que Maura olhava. O valor literário de seus diá­rios evidencia-se também nas descrições de suas companheiras de infortúnio:

“Algumas mulheres sonâmbulas andam vagas pelos corredores cinzentos. Outras, sentadas no cimento fresco, olham para nada, perdendo-se em distâncias incomensuráveis – brancas (…). Um rosto pálido me olha, longo, sem falar. De cócoras, no corredor, ela tem o infinito nos olhos”.

São muitos os personagens, dos médicos às guardas, que ela constrói com olhar arguto e palavras precisas. “Talvez devesse escrever um conto para cada doente”, chega a dizer. Sobre uma delas, ­Auda, escreveu um, publicado no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, onde trabalhava quando se internou.

Suas descrições do espaço físico – os “quartos tristes, quase nus”, o quarto-forte sem janelas e o refeitório nauseante – e dos tratamentos – injeções de insulina, eletrochoque e agressões – expõem o ambiente que daria impulso à luta antimanicomial.

Mas ser louco, como ela define, é também ser excessivo e, em alguns instantes, experimentar a liberdade total: “Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades – em excesso de liberdade”.

Dos excessos derivam, porém, faltas e medos. As perturbações psíquicas deixam suas marcas em passagens nas quais um risco ocupa o espaço deixado pela palavra que não vem e no lamento em torno da dificuldade para escrever, dos lapsos e da falta de disciplina.

O fim abrupto da narrativa, reflexo dessa impossibilidade, deixa no leitor a vontade de seguir lendo essa história, mesmo sabendo dela o triste final. •

Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A loucura vista de dentro’

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Last Update: 09/01/2025