Durante o governo José Sarney, travei uma disputa acirrada com Saulo Ramos, então Consultor da República e posteriormente Ministro da Justiça. Quando eu investigava e denunciava irregularidades envolvendo-o, Otávio Frias — que já havia se acertado com Saulo — recorria ao conceituado advogado Walter Ceneviva para desqualificar juridicamente meus argumentos. Era o leigo contra o jurista.
O jornal construía uma confusão deliberada de interpretações para rebater minhas apurações. Foi quando recebi um telefonema inesperado do então Ministro do Supremo Tribunal Federal Sidney Sanches – que eu não conhecia pessoalmente -, que me ofereceu uma orientação simples para enfrentar essa “embromação” jurídica:
— Analise o caso racionalmente, usando a lógica. Se a lei refletir o que você constatou como correto, então a interpretação jurídica está correta; caso contrário, ela será falsa.
Trago esse episódio à tona diante da interminável discussão sobre a decisão do Ministro Gilmar Mendes de alterar as regras de impeachment de Ministros do Supremo.
O Legado de Weimar e a Função das Cortes Constitucionais
Leis não podem ser interpretadas no vazio. Tem que ser analisadas dentro do contexto histórico e factual. E, também, com base em exemplos históricos.
Desde a ascensão do nazismo, o papel das Constituições e das Supremas Cortes é evitar a chamada ditadura das maiorias — princípio universal nas sociedades democráticas após a República de Weimar, que pavimentou o caminho para o nazismo.
Weimar possuía direitos fundamentais frágeis, uma Presidência extremamente forte com poder de exceção quase ilimitado, partidos antidemocráticos legalizados e ausência de controle judicial robusto. Hitler conquistou a maioria e destruiu a democracia alemã.
Após a tragédia nazista, as constituições passaram a incorporar quatro escudos fundamentais:
1. Direitos fundamentais inderrogáveis (ou absolutos)
Surgiu uma relação rígida de direitos que não podem ser revogados nem pelas maiorias. São as chamadas cláusulas pétreas: a maioria decide o governo, mas não decide quem é gente nem quem tem direitos.
2. Sistema robusto de controle constitucional
A Alemanha pós-guerra criou o Bundesverfassungsgericht, talvez o tribunal constitucional mais poderoso do mundo. Esses tribunais têm o poder de anular leis aprovadas por maiorias parlamentares, proteger direitos fundamentais contra maiorias ocasionais e julgar partidos e organizações que atuam para destruir a ordem democrática.
3. Transição do “governo da maioria” para a “democracia constitucional”
Democracia não se resume a votar. É votar dentro de regras que jamais poderão destruir a dignidade humana, a pluralidade e os direitos fundamentais. A Constituição funciona como um árbitro que garante que o jogo continue possível para todos.
4. Cláusulas de exceção muito mais limitadas e com controles múltiplos
O art. 48 de Weimar virou lenda de terror constitucional.
Por isso, pós-1945:
- Estados de exceção só podem ser decretados com controle parlamentar estrito.
- Sempre têm prazo determinado.
- Muitas constituições exigem revisão judicial desses atos.
O Caso Brasileiro
Sei que é muito difícil para a multidão de semi-juristas espalhados pela mídia debruçar-se sobre esse bicho estranho batizado de “mundo real”.
Graças ao discurso da antipolítica e a eventos como a Lava Jato, temos hoje um Congresso dominado pelo crime organizado. Na outra ponta, temos as instituições do Estado — com o Supremo Tribunal Federal à frente e a Polícia Federal — prestes a travar talvez a maior batalha democrática desde a redemocratização.
Há uma infinidade de ilegalidades e provas de articulação entre parlamentares: emendas PIX, vinculações com o Banco Master e coligadas, ligações com bets. Temos duas casas — Câmara e Senado — presididas pelo que há de pior na política nacional, herdeiros diretos de Eduardo Cunha e Arthur Lira. Sem freios, serão capazes de sequestrar a República.
As represálias contra o Supremo ocorrem em duas frentes. Primeiro, a avalanche de ações de impeachment, nesse democratismo insano que permite a qualquer cidadão abrir processo contra Ministro do Supremo. Segundo, a ameaça explícita do Senado de começar a processar Ministros, tendência que deve se agravar com a revelação dos crimes de parlamentares.
Nesse quadro, a estratégia do populista moderno é destruir, sem parecer destruir. Ele destrói a credibilidade das instituições, cria uma maioria emocional, testa limites diariamente. Insinua golpe e recua, ataca o STF e recua, acusa fraude e recua. A cada teste, o sistema perde um pouco. Além disso, capturam órgãos intermediários, como polícias militares, agências reguladoras, órgãos de fiscalização e mídia.
Finalmente, em cima dessa barafunda, os aliados no Congresso vão alterando as regras operacionais. Exemplos globais:
- Viktor Orbán alterou leis de mídia e judiciário em microetapas.
- Erdogan usou sucessivas reformas administrativas.
- Modi enfraqueceu instituições via indicações partidárias.
O golpe final parece “legal”, Orban nunca deu um golpe, mas a Hungria hoje é uma autocracia eleitoral. Tudo isto devido à exploração do voto. “Eu sou a vontade da maioria. Logo, qualquer limitação à minha vontade é antidemocrática.”
Esse truque retórico cria o paradoxo perfeito. A instituição que o limita vira “inimiga do povo”. Qualquer reação vira “censura”. Ele se apresenta como o mártir do sistema.
É a versão 2020 do que Hitler fez em 1932–33, só que sem SA nas ruas.
O Quadro Institucional de Alto Risco
1. Redes sociais — o grande motor da erosão democrática
- Fake news coordenadas
- Incitação contínua ao descrédito das eleições
- Demonização de instituições
- “Maioria emocional” substituindo maioria eleitoral
São o equivalente moderno dos jornais radicais de Weimar.
2. Congresso — sistema partidário fragmentado
- 20 a 30 partidos sem coerência ideológica
- Lógica de “aluguel de maioria”
- Uso de chantagem orçamentária
- Incentivo à instabilidade institucional
É o velho parlamento de Weimar com wi-fi e emendas PIX.
3. Forças de segurança
- PMs com histórico de politização
- Uso de símbolos de autoridade em atos políticos
- Tentativas de enquadrar militares como árbitros eleitorais
Aqui mora o potencial de escalada do conflito real.
4. Partidos
- Personalismo extremo
- Pouca democracia interna
- Nenhuma educação política sistemática
A fábrica perfeita de líderes carismáticos sem compromisso institucional.
Onde entra a ADPF 1.259 no Mapa
Ela fortalece o pilar central do sistema, que é o Judiciário constitucional.
Se esse pilar cai, Congresso descontrolado + Forças politizadas + Redes tóxicas = colapso democrático em meses.
Agora, analise essa instabilidade democrática com a Lei 1.079/1950 e com a ADPF 1.259:
Quadro Comparativo — Impeachment de Ministros do STF
| Tema | Lei 1.079/1950 (texto original) | Decisão do STF (ADPF 1.259) |
| Quórum para admitir denúncia no Senado | ✅ Maioria simples dos senadores | ❌ Exigido 2/3 dos senadores (maioria qualificada) |
| Instauração do processo | Pode ocorrer com aprovação simples do parecer | ❌ Somente após atingir 2/3 do Senado |
| Afastamento do ministro após recebimento da denúncia | ✅ Automático | ❌ Proibido — viola independência judicial |
| Redução de salário durante o processo | ✅ Corte de 1/3 dos vencimentos | ❌ Vedado — garantia de irredutibilidade |
| Perda de cargo durante a tramitação | Possível na prática com afastamento automático | ❌ Vedada antes do trânsito em julgado político |
| Fundamento do impeachment | Tipos vagos: “desídia”, “proceder incompatível com dignidade” | ⚠️ Interpretação restritiva: votos, decisões ou posições jurídicas NUNCA podem ser crime |
| Legitimidade para apresentar denúncia | ✅ Qualquer cidadão | ✅ Mantido (pedido de restrição ao PGR foi negado) |
| Possibilidade de uso político do impeachment | ✅ Alta — rito simples facilitava perseguição | ❌ Vedado — STF reconhece risco de intimidação institucional |
| Aplicação de medidas cautelares contra ministros | Por analogia com o CPP | ❌ Bloqueada — CPP não se aplica a ministros do STF |
| Medidas cautelares contra candidatos em eleição (art. 236 CE) | Texto antigo — só vedava prisão | ✅ Ampliada proteção: proibidas medidas que impeçam campanha nos 15 dias pré-pleito |
| Proteção à independência judicial | ❌ Pouca ou nenhuma previsão | ✅ Eixo central da cautelar |
| Controle contra “lawfare institucional” | ❌ Ausente | ✅ STF reconhece existência de “constitucionalismo abusivo” |
Se você conseguir dormir tranquilo, tendo por aparato jurídico a Lei 1.079/1950 , de duas uma: ou ainda acredita em cegonha, ou já aderiu à turma de Alcolumbre.
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