A literatura e a política em Vargas Llosa*
por Urariano Mota
Em muitos artigos sobre a morte de Mario Vargas Llosa, vi que os mais honestos mencionavam a sua militância na extrema direita em eleições, palestras e artigos, mas a mencionavam rápido, como gato que passa sobre brasas, e partiam logo para o enaltecimento da sua grande obra.
No campo nosso, da esquerda, argumentou-se que pela dialética, à luz do exemplo de Engels que escreveu sobre o monarquista Balzac, para esclarecer que o romancista superou na sua práxis as opiniões políticas, devia-se considerar que em nome da boa análise devia-se ver que, assim como em Balzac, em Vargas Llosa também havia que se separar a obra e o reacionário.
Mas aí, meus amigos, a aproximação, ainda que remota, ainda que meramente ilustrativa, é imprópria e tão descabida quanto comparar Picasso a Romero Britto. Ou entre Charles Chaplin e Renato Aragão. O paletó de Balzac era maior, imensamente maior, para nele se abrigar Mario Vargas Llosa. Lembram da canção “Engole ele, paletó”, cujos versos falavam “Engole ele, engole ele, paletó, que o dono dele era maior”?
Tento explicar para não ser injusto. Na edição da Editora Globo, que eu tenho aqui em casa, estão 90 romances de Balzac em 17 volumes, publicados em 1989. Desse imenso conjunto de obras, li pelo menos 50 romances.
Entre vários pontos altos dessa cordilheira, que matou Balzac de esgotamento, destaco duas obras-primas da literatura mundial: “Ilusões Perdidas” e “O Pai Goriot”. Li cada um desses dois romances pelo menos duas vezes. Na primeira, para curtir o gênio. Na segunda, para estudá-lo, ver como se faz uma obra-prima. Estudei mal, já se vê, porque tive a ilusão de fazer amor por estudo. Quem tentar semelhante ação saiba que o encanto derruba a cerebração do começo.
Paulo Rónai, que anotou e escreveu a introdução de toda a Comédia Humana, sobre “As Ilusões Perdidas” nos fala em um trecho:
“Neste imenso livro, Balzac trabalhou durante toda a sua vida, ou pelo menos toda a sua carreira literária. Além de formar o mais vasto dos romances de Balzac, Ilusões Perdidas é, na verdade, o mais balzaquiano de todos os seus romances. Hoje, nada nos impede de apreciar devidamente a epopeia de Luciano de Rubempré e de colocá-la entre as obras mais significativas do romancista. Luciano de Rubempré é uma das criações mais completas de Balzac. Na representação desse personagem, o romanista mostra-se digno sucessor dos clássicos, criadores de grandes tipos”.
Assim escrevo para dizer que sobre a obra de Balzac não sou um especialista, mas a conheço um pouco mais que a leitura apressada de um livro. Sobre o gênio, não me cansei de aprender o que o grande filósofo Lukács escreveu . Mas para quê tamanha exibição? É que salta aos olhos a impropriedade de ilustrar o reacionarismo de Mario Vargas Llosa, na sua pequena obra, com a do gigante imortal.
De Vargas Llosa li seus primeiros romances, entre os quais me impressionaram “A cidade e os cachorros” e “Conversa no Catedral”. Um bom autor estaria justificado se houvesse parado aí. Mas não. Longevo, Mario Vargas Llosa foi mais longe.
É uma desgraça que autores e artistas de modo geral envelheçam em público. Exibem a decadência como num espetáculo, porque se creem gênios e sublimes. Mas nem todos possuem a resistência orgânica e intelectual de um Tolstói, que escreveu um conto magistral como “Depois do baile”, aos 75 anos. E que morreu na rebeldia, excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa, que o compreendeu como um terror para a sociedade do seu tempo. Mas, de um ponto de vista pessoal, Mario Vargas Llosa se tornou um rebelde a favor. Defensor do capitalismo, da direita, do fascismo. Ah, mas isso nada tem a ver com a sua obra. Então, vejamos.
Sobre “A Guerra do fim do mundo”, leiam por favor o que fala a grande crítica Walnice Nogueira Galvão:
“Vargas Llosa o que faz com Os Sertões? Transforma o livro num best-seller. Ou seja, facilita tudo. Retira o conflito, retira as contradições, retira as antíteses, retira figuras de linguagem como o Hércules-Quasímodo e a Troia de Taipa. Fica tudo simples, fácil e bem explicado para o Vargas Llosa. Ele acabou com o livro. Ele devia ter uma tal inveja do Euclides da Cunha que faz uma coisa pior: cria um jornalista míope, que está fazendo a reportagem da guerra e que depois perde os óculos. É um insulto. Retratar o Euclides como um cara que não enxerga? Eu acho isso de uma baixeza que você não imagina”.
No entanto, mais de um leitor acha “A guerra do fim do mundo” um grande romance, um tributo a Euclides da Cunha! Então, olhem agora a queda extraordinária de qualidade em “Tia Júlia e o Escrevinhador”. Repito o que escrevi antes:
Em “Tia Júlia e o escrevinhador”, Mario Vargas Llosa vence o escândalo, os traumas, a tempestade, a inexperiência do personagem adolescente, pelo que conta em suas linhas. “O casamento com tia Júlia foi realmente um sucesso e durou bem mais do que todos os parentes e até ela mesma tinham temido, desejado ou prognosticado: oito anos”. Que sucesso! O narrador venceu todas as dificuldades. Em “Tia Júlia e o Escrevinhador, Mario Vargas Llosa perdeu apenas o mais essencial para um escritor: a construção e a responsabilidade da arte de narrar.
Agora, para comparar ao reacionarismo de Vargas Llosa, olhem um trecho do que escreveu Engels sobre um dos maiores romancistas até hoje:
“Balzac era politicamente um legitimista; a sua obra grandiosa constitui uma elegia permanente da decadência irreparável da boa sociedade; as suas simpatias vão para a classe destinada à extinção. Mas, apesar de tudo isso, a sua sátira nunca se revela mais mordaz, a sua ironia nunca é mais amarga, do que quando põe em movimento os próprios homens e mulheres com os quais simpatiza mais profundamente – os nobres.
E os únicos homens aos quais se refere com clara admiração são os seus antagonistas políticos mais acirrados, os heróis republicanos do Cloitre Saint Mary, aqueles que nessa época (1830-36) eram os verdadeiros representantes das massas populares.
O fato de Balzac se ver compelido a agir contra as suas próprias simpatias de classe e preconceitos políticos, de ver a necessidade da queda dos seus favoritos nobres e os descrever como pessoas que não merecem melhor sorte, de ver os verdadeiros homens do futuro onde, temporariamente, se encontravam – tudo isto afigura-se-me um dos maiores trunfos do realismo e das maiores características do velho Balzac”.
E me recolho. Abraço fraterno.
*Vermelho A literatura e a política em Vargas Llosa – Vermelho
Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.
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