Por Solange Engelmann
Da Página do MST
Nesta quarta-feira (7), o Brasil comemora os 18 anos da Lei Maria da Penha (11.340/06), sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2006. A aprovação da lei trouxe alguns avanços importantes no combate à violência contra às mulheres e meninas no Brasil, mas ainda são necessárias políticas públicas e avanços sociais no combate ao feminicídio e a cultura patriarcal, do estupro e do ódio contra as mulheres e LGTBQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais e demais possibilidades de orientações sexuais ou identidades de gênero).
A lei prevê algumas medidas essenciais, como medidas protetivas e mecanismos especiais de proteção às vítimas junto às esferas de Justiça, polícias e Ministério Público. A lei também explica o que é violência contra a mulher, que vai muito além da física. Ao todo, são cinco tipos de violência que a lei evidencia: a física, moral, patrimonial, sexual e psicológica. E na esfera penal, a lei tipifica o crime de descumprimento de medida protetiva, com penas de detenção de até dois anos.
Porém, após 18 anos, o avanço na legislação com a Lei Maria da Penha não evitou o aumento nos dados da violência contra a mulher. Os dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que todos os registros de crimes contra as mulheres cresceram em 2023, na comparação com 2022; entre eles, homicídios e feminicídios, agressões em contexto de violência doméstica, ameaças, perseguição, violência psicológica e estupro. No decorrer do passado, 258.941 mulheres foram agredidas, o que indica alta de 9,8% em relação a 2022. O número de mulheres que sofreram ameaça também subiu 16,5% (para 778.921 casos), e os registros de violência psicológica aumentaram 33,8%, totalizando 38.507.
O enfrentamento à violência contra as mulheres, meninas e LGTBQIA+ também é um pauta essencial e urgente no campo. Nas áreas de Reforma Agrária do MST, as/os trabalhadoras/es Sem Terra vêm desenvolvendo diversas ações nesse sentido, a partir do Setor de Gênero do MST, que tem atuado na conscientização em torno dos direitos das mulheres, combate às diversas formas de violência de gênero e construção de novas relações humanas, com a adoção de um protocolo de enfrentamento a essas violências na base social do Movimento. Entre esse conjunto de ações se destaca a criação da Rede de Combate à Violência Doméstica no estado de São Paulo, durante o período da pandemia em 2020.
“Hoje o que segue mais ativo da nossa Rede é o núcleo de saúde mental que tem ofertado cuidados para nossa base social. Nesses quatro anos, a gente tem feito alguns processos de formação sobre os temas de gênero, diversidade sexual e enfrentamento das violências. E atualmente temos feito internamente esse debate das relações humanas”, afirma Paula Sassaki, psicóloga, que integra o Setor de Gênero do MST em São Paulo e da coordenação da Rede de Combate a Violência Doméstica em SP.
Leia a entrevista na íntegra abaixo:
Pode nos contar quando foi criada a Rede de Combate à Violência Doméstica no estado de São Paulo e qual seu objetivo?
A Rede de Combate à Violência Doméstica do estado de São Paulo surge em abril de 2020, logo depois que a gente começou a isolamento social e que os casos de violência doméstica começaram a crescer. E aí, a partir da campanha do Setor de Gênero do MST, contra os vírus e as violências, a gente então começou a organizar a nossa iniciativa no estado.
A gente montou essa rede, que é composta por representações de cada uma das nossas regionais. Tinha uma frente de comunicação que produzia materiais audiovisuais sobre o tema, para abrir diálogos, quebrar o isolamento a partir da estratégia da comunicação popular. E montamos também um coletivo de profissionais que eram basicamente da área da saúde mental e profissionais da área jurídica, caso a gente tivesse casos e que precisasse acessar.
Quais as principais ações desenvolvidas Rede de Combate à Violência Doméstica de São Paulo, nas áreas de Reforma Agrária em São Paulo?
Hoje o que segue mais ativo da nossa Rede é o núcleo de saúde mental que tem ofertado cuidados para nossa base social, entendendo que os outros núcleos foram ganhando outro tipo de organicidade também, e que a gente já não tem mais essa necessidade tão grande quanto durante a pandemia de produzir conteúdos e materiais sobre o tema.
Nesses quatro anos, a gente tem feito alguns processos de formação sobre os temas de gênero, diversidade sexual e enfrentamento das violências. E atualmente temos feito internamente esse debate das relações humanas. Então a rede se junta à organicidade do Movimento, com outros setores e coletivos para fortalecer o debate desse tema e pensar as estratégias nos nossos territórios.
Além disso, a gente tem feito alguns trabalhos mais relacionados aos cuidados por meio de oficinas. Por exemplo, a mais contínua foi a oficina de arpilleras, em que a gente teve vários ciclos, alguns on-line e outros presenciais, além de uma série de trabalhos de cuidados, pensando o foco da saúde mental e do processo do cultivo dos afetos, como forma de cuidado com a nossa militância, que é o bem mais precioso da nossa organização. Também debatendo a questão das relações humanas, o enfrentamento, a prevenção também das violências, uma dimensão muito importante na conscientização.
A gente também participa de momentos de formação e fazemos os atendimentos, acolhimentos em saúde mental, sejam eles coletivos ou individuais. Todos esses trabalhos acontecem de forma militante, solidária e envolvendo um coletivo de profissionais que tem se juntado a nós para pensar essas metodologias, colocá-las na prática e também ofertar isso dentro dos nossos territórios, algumas vezes de maneira remota. E quando a gente tem condição, faz isso de maneira presencial.
Qual a importância da Rede de Combate à Violência Doméstica para a conscientização e o enfrentamento às violências nas áreas de Reforma Agrária?
O tema das violências atravessa as nossas relações de modo muito expressivo, nas formas das nossas expressões afetivas, das relações entre nós. Ela está presente em diversas esferas da nossa vida, seja violência de estado, violência política, sejam as violências que acontecem dentro das relações interpessoais. Essa violência que a gente chama de violência doméstica, é porque acontece dentro dos espaços de convivência, de intimidade, de familiaridade, espaços que a gente diz que são privados.
A Rede de Combate à Violência Doméstica e todas as campanhas que o MST tem feito em torno desse tema, tem o intuito de começar a abrir diálogo sobre isso. Falar sobre identificar os tipos de violência e identificar quem precisa de proteção. Quem são as companheiras e os companheiros que, por algum motivo, precisam de um apoio ou de ser removido de algum espaço para que a gente possa protegê-los? O que a gente precisa pensar enquanto medidas políticas, organizativas para que os nossos territórios possam ser de fato seguros para todos os sujeitos em sua diversidade de expressão, respeitando raça, gênero, diversidade sexual, mas também faixa etária. Também a questão da religiosidade, espiritualidade.
Como tem sido o processo de escuta e acolhimento das pessoas nas diversas situações de violências?
É um processo que vem junto com o debate da nossa sociabilidade e da necessidade de transformação de algumas reproduções da violência que são infringidas pelo capital. Esse capitalismo racista e patriarcal que vai conformando as relações e violando os nossos direitos, nossos corpos e as nossas subjetividades ao longo da história, e que por isso também a gente acaba muitas vezes reproduzindo essas violências entre as nossas relações. A Rede e o setores do MST que têm trabalhado com o tema das relações humanas, têm esse grande desafio de entender como seria uma sociabilidade, com esses sujeitos revolucionários, sejam eles individuais, sejam sujeitos coletivos.
Para esse período histórico que demanda cuidado, o cuidado entre as pessoas, cuidado com a natureza e também o cuidado com a nossa própria organização para que a gente possa seguir existindo, resistindo e se recriando nesse processo de capitalismo tão intenso e que vem colocando desafios históricos bastante extremos. Historicamente, as mulheres, assim como o feminismo, têm sido protagonistas dentro desse tema, até porque nós somos vítimas diretas dessas violências, como por exemplo, mostram os dados de violências de gênero e também o feminicídio.
O Brasil é um dos países que mais mata mulheres. É um dos países que mais mata sujeitos e sujeitos LGBTQIA+. Isso mostra para nós que temos um desafio enorme enquanto sociedade e enquanto movimento popular. Não podemos deixar esses temas de fora ou achar que isso é secundário. Então, a Reforma Agrária Popular precisa também se debruçar sobre os corpos, a vida, a segurança, as possibilidades de viver, de trabalhar, de amar, de todos os seus sujeitos sociais envolvidos.
Hoje a rede também é muito procurada por sujeitos LGBTQIA+, temos muitos companheiros e companheiras que nos procuram, e essas escutas têm nos ensinado que o Movimento é um lugar em que muitas vezes a gente encontra essas reproduções das violências, mas que também a gente encontra respostas coletivas para isso, respostas coletivas de acolhimento, de proteção, de tentar cuidar dessas pessoas que estão em risco ou que sofreram algum tipo de violência.
E as mulheres têm sido sujeitas históricas fundamentais nesse processo, porque ao se levantarem contra o silenciamento que é feito em torno das violências domésticas, a gente começa a trazer a necessidade coletiva e política desse enfrentamento, e começa a desvelar também um pouco dessas amarras que o patriarcado e o racismo oferecem para o capitalismo, e que muitas vezes passam como naturalizadas diante da nossa sociabilidade, da nossa vida como um todo.
Então, a escuta das mulheres tem revelado para gente tanto a necessidade desse tipo de iniciativa, desse debate, da defesa dos corpos, das subjetividades e das vidas. Mas também tem nos mostrado muito a respeito do cuidado.
Tem mostrado a respeito da agroecologia, das nossas relações, as relações de trabalho, das metodologias, da nossa cultura política e organizativa. E desvelado muitas coisas também sobre racismo e apontado para esses desafios que a gente tem enquanto organização, nesse tempo histórico. E que a gente só vai conseguir avançar, desde que saiba cuidar dos nossos sujeitos e sujeitos e da nossa organização.
No marco dos 18 anos da Lei Maria da Penha, o que o setor de gênero do MST e a Rede tem a comemorar?
É difícil pensar em comemorar frente à criação de uma lei que se a gente vivesse numa sociedade justa, nem deveria existir, que é a Lei Maria da Penha, que é feita para proteger as pessoas, em especial as mulheres, desse tipo de violência e de violação e opressão.
Mas a gente tem sim que celebrar a luta das mulheres nesse processo, a luta das sujeitas e sujeitos LGBTQIA+ também nesse processo, porque cada vez que uma de nós levanta a voz e denuncia o que está sofrendo, aquilo que é colocado como algo que deve ser silenciado, mascarado, maquiado.
Toda vez que a gente rompe com essas amarras, também está cortando uma cerca, fazendo um front de denúncia e pequenas transformações dessa lógica capitalista, patriarcal e racista. Então, cada pessoa que enfrenta esse processo e que com isso ganha essa voz coletiva, quando os nossos coletivos, os nossos setores, os nossos movimentos, abraçam essa bandeira e eles entendem que a gente não pode pensar outra sociedade, se a gente também não pensar outras formas de se relacionar entre nós e com a natureza.
A gente tem esses processos de avanço e essa quebra do silêncio, esse grito, mas também esse canto, que principalmente as mulheres têm levantado, é algo a ser celebrado com muita força e memória àquelas que nos deixaram, mas também com uma força de vida, tal qual uma semente que germine e que a gente possa ver as nossas relações sendo transformadas cada vez mais.
Que desafios que ainda permanecem no enfrentamento às violências contra a mulher nos territórios do MST?
É urgente que as mulheres parem de sofrer violência, parem de morrer por serem mulheres. Que sujeitos e sujeitas LGBTQIA+ parem de sofrer violência, de morrer. Que as pessoas pretas parem de sofrer racismo. Isso é urgente e está ligado a nossa luta de transformação social e não vamos conseguir completar nosso projeto de Reforma Agrária Popular se não tiver também essa transformação das nossas relações.
Então, sempre que a gente finca essa bandeira, ergue a nossa voz, que a gente se faz bando nesse processo e deixa de estar sozinha, é uma vitória de um histórico de mulheres, de bruxas, de movimentos feministas, de várias pessoas que nos antecederam. E é também uma conquista para o tempo futuro, para caminhar no sentido do projeto que a gente precisa construir.
Em relação aos desafios, temos muitos, porque somos nós que teremos que forjar essa outra sociabilidade, outra forma de nos relacionar entre nós, com a natureza, com a diversidade de sujeitos e sujeitas que existem e sempre existiu. Os desafios hoje, além da mudança da nossa sociabilidade, é do um olhar para os nossos métodos organizativos, para que eles sejam cada vez mais cuidadores, mais humanizadores.
O MST é um movimento do acolhimento, a nossa base social é muito diversa. Então a gente tem o desafio de entender como é que pode contemplar essa diversidade sem que alguns sujeitos sejam violentados por qualquer que seja a sua expressão no mundo. Seja uma expressão de gênero, de raça ou de diversidade sexual.
Outro desafio é pensar em prevenção às violências. E isso é dado a partir de uma criação, de uma cultura política, organizativa; a partir de formação, conscientização, de debate aberto sobre esse tema. A gente precisa conversar sobre isso, pensar práticas de cuidado. Envolver os companheiros também nessas práticas de cuidado, ou seja, no cuidado com as crianças, com a saúde, com os espaços físicos. Então, a gente precisa dividir mais esse papel social de cuidado entre nós. A gente também tem o desafio de avançar com nosso protocolo [contra as violências], nas medidas organizativas coletivamente, em torno das situações que não conseguimos prevenir e que já aconteceram de violência, e seguem acontecendo. Para que a gente possa aprender com isso e proteger as pessoas que estão em risco ou que estão em situação de violência. A proteção desses sujeitos é muito importante, porque isso pode mudar vidas. A gente tem aprendido isso com a rede.
*Editado por Gustavo Marinho