A Lei de Anistia e a Justiça Transicional

por Dora Nassif

O que é a Lei de Anistia e o que ela representa para a democracia brasileira, sobretudo no que diz respeito aos povos indígenas?

Artigo 1º da Lei nº 6.683/1979:

“É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em atos institucionais e complementares.”

A Lei de Anistia foi, em essência, um instrumento de autodefesa dos agentes da ditadura. Formulada ainda sob o controle do regime militar, blindou juridicamente, no âmbito penal*, os perpetradores de graves violações de direitos humanos, impedindo sua responsabilização e delimitando os contornos da redemocratização brasileira.

Na teoria, a ditadura terminou em 1985; na prática, a democracia que emergiu desse pacto nasceu marcada pela permanência de estruturas autoritárias, agora legitimadas por uma nova institucionalidade. Exemplos claros disso são a manutenção de uma polícia militarizada, herança direta da lógica repressiva da ditadura, e a naturalização da violência estatal contra populações pobres, negras e indígenas. O passado não foi superado, apenas mudou de forma.

Pode-se afirmar, portanto, que a Lei de Anistia de 1979 foi um dos principais obstáculos à implementação de uma verdadeira justiça de transição no Brasil.

Antes de entender melhor essa afirmação, é preciso lembrar que a justiça transicional se organiza em torno de quatro pilares interligados: verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição. A experiência brasileira bloqueou avanços consistentes em cada um deles:

  • a verdade segue incompleta, como mostram os desaparecidos políticos cujo paradeiro nunca foi revelado;
  • a reparação foi seletiva, reconhecendo apenas vítimas em moldes individualizados e urbanos, deixando de fora comunidades inteiras que sofreram remoções e massacras;
  • a justiça não foi efetivada, uma vez que os perpetradores de violência não foram responsabilizados;
  • as garantias de não repetição nunca existiram de fato, já que a estrutura institucional de violência se manteve praticamente intacta.

É nesse ponto que os apagamentos em relação aos povos indígenas escancaram os limites da transição democrática brasileira.

As violências contra os povos originários não começaram na ditadura militar — remontam à colonização e ao projeto de expropriação territorial que atravessa cinco séculos. Mas o regime ditatorial aprofundou tais horrores. O caso do Reformatório Krenak, que funcionou como um verdadeiro campo de concentração, é um exemplo emblemático. Houve institucionalização da repressão, do controle tutelar do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI) à sua continuidade sob a Funai.

O reconhecimento dos povos indígenas como vítimas do Estado só ocorreu tardiamente, em 2014, com o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Até então, mortes, remoções forçadas e encarceramentos sequer eram lembrados como parte da violência estatal. Sem esse reconhecimento, os quatro pilares da justiça transicional permaneciam inviáveis: sem identificar os horrores sofridos, não há memória, nem justiça, nem reparação, muito menos garantias de não repetição. O presente comprova isso: a tentativa de impor a tese do Marco Temporal demonstra a continuidade da violência estrutural. Os povos foram deslocados, torturados, presos e submetidos ao que muitos chamam de “seu próprio fim do mundo”.

A jurista Maíra Pankararu, no livro Demarcar é reparar, provoca: “Qual o sentido de um pedido de perdão pelo Estado quando este continua perseguindo os indígenas e esvaziando os direitos e as políticas públicas conquistadas a duras penas?” (Pankararu, 2023, p. 33).

Na mesma direção, Ailton Krenak aponta que, enquanto não houver reconhecimento de que a violência contra os povos originários é estrutural e permanente, a democracia brasileira continuará sustentada por silêncios. “Essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”, escreve, associando epistemicídio e destruição da natureza como faces do mesmo processo (Krenak, 2019, p. 23).

Fica, então, a pergunta: quando haverá justiça de transição para os povos indígenas no Brasil?

*Importante destacar: a anistia blindou especificamente no âmbito penal, sem impedir outras formas de responsabilização jurídica.

Referências

Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.

Pankararu, M. (2023). Demarcar é reparar: Direito, memória e justiça de transição indígena. São Paulo: Expressão Popular.

Brasil. (1979). Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Diário Oficial da União. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm

Comissão Nacional da Verdade. (2014). Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV.

Dora Nassif – Advogada e Mestranda em Direitos Humanos, Universidad Pablo de Olavide, em Sevilla

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Last Update: 25/08/2025