Durante o período do Mandato Britânico na Palestina, entre 1920 e 1948, o direito criminal foi utilizado pelas autoridades coloniais como uma ferramenta central de controle e repressão. Longe de ser um instrumento neutro de justiça, a legislação penal serviu, na prática, como mecanismo para conter a resistência da população palestina, reprimir a mobilização política e consolidar o domínio imperial britânico sobre o território.
Entre 1920 e 1945, uma série de ordens, regulamentos e decretos foram emitidos, formando um aparato legal que permitia à administração britânica agir com amplos poderes coercitivos, muitas vezes à margem das garantias jurídicas básicas. A primeira medida relevante foi o Prevention of Crime Ordinance, emitido em outubro de 1920, que permitia prisões preventivas e a imposição de restrições de movimento a indivíduos considerados suspeitos, mesmo sem condenação judicial.
Poucos meses depois, em março de 1921, foi instituído o Palestine Police Ordinance, e posteriormente criada a Palestine Gendarmerie, uma força paramilitar recrutada em parte entre veteranos britânicos da força policial colonial da Irlanda. Essa militarização do policiamento introduziu práticas de repressão violentas, já utilizadas em outros domínios imperiais britânicos. Em paralelo, leis como a Collective Responsibility for Crime Ordinance, de 1922, estabeleciam a responsabilização coletiva de comunidades inteiras por atos cometidos por indivíduos — medida que legalizava, por exemplo, punições financeiras e represálias contra aldeias inteiras.
Com o tempo, o aparato legal se expandiu de forma significativa. Em 1925, entrou em vigor o Prevention of Crime (Tribal and Village Areas) Ordinance, voltado especificamente a áreas rurais palestinas. Em 1926, com a reorganização das forças policiais, foi também emitida a Collective Punishments Ordinance, que formalizou a prática de punir coletivamente populações inteiras por ações consideradas delituosas por parte das autoridades.
Tais leis permitiam, por exemplo, que vilarejos fossem multados, que propriedades fossem demolidas ou confiscadas, ou que toques de recolher fossem impostos sem necessidade de processo judicial. Esses mecanismos não apenas violavam princípios básicos de responsabilidade individual e devido processo legal, como serviam à intimidação coletiva.
Na década de 1930, com o agravamento das tensões políticas e o aumento da mobilização palestina contra a colonização sionista apoiada pelos britânicos, as medidas repressivas se intensificaram. Em 1929, após uma série de revoltas, foi introduzido o Criminal Law (Seditious Offences) Ordinance, que criminalizava expressões políticas contrárias à administração.
Pouco depois, em 1935, a imprensa foi colocada sob forte controle com a emissão do Press Ordinance, que exigia licença governamental para publicação e permitia a suspensão arbitrária de jornais considerados “subversivos”. Essas leis permitiram a prisão de jornalistas, o fechamento de jornais e a censura de discursos políticos.
O auge do aparato repressivo veio entre 1936 e 1939, durante a Grande Revolta Árabe. A resposta britânica foi marcada por uma radicalização do uso do direito como instrumento de guerra interna. Foram promulgadas as Emergency Regulations em abril de 1936 e novamente ampliadas em 1945.
Esses regulamentos instituíram um Estado de emergência contínuo, concedendo às autoridades poderes extraordinários: detenções administrativas ilimitadas, criação de tribunais militares, demolições de casas, deportações e fechamento de instituições. A lógica do estado de exceção tornou-se permanente, permitindo que a autoridade colonial atuasse sem as restrições impostas por leis civis regulares. Durante esse período, milhares de palestinos foram presos, aldeias inteiras foram punidas, e as estruturas políticas e sociais locais sofreram grave desorganização.
Em 1936, o Criminal Code Ordinance substituiu oficialmente o antigo código penal otomano, introduzindo elementos típicos das colônias britânicas. Embora apresentado como uma reforma técnica, esse novo código incorporava e institucionalizava dispositivos legais que favoreciam a repressão.
Assim, a construção do sistema criminal no Mandato não foi uma modernização jurídica, mas uma reformulação autoritária adaptada à realidade do colonialismo e à necessidade de suprimir a oposição. O impacto desse sistema legal sobreviveu ao fim do Mandato.
Várias das medidas adotadas pelos britânicos por meio do Emergency Regulations foram posteriormente adotadas pelo Estado de “Israel” e permanecem em uso até hoje, especialmente nos territórios palestinos ocupados. Práticas como detenções administrativas, demolições punitivas de casas e punições coletivas continuam sendo aplicadas, sob justificativas semelhantes às utilizadas no período colonial: segurança, ordem pública e combate ao “terrorismo”. Assim, a herança jurídica do Mandato Britânico na Palestina permanece viva, não apenas como registro histórico, mas como estrutura ainda atuante.
O direito criminal durante o Mandato Britânico não foi, portanto, uma expressão de justiça ou legalidade universal. Foi um instrumento moldado por interesses coloniais, usado para silenciar, punir e subjugar.
Ao permitir a repressão legalizada de movimentos políticos e a punição indiscriminada de comunidades inteiras, o sistema penal do Mandato exemplifica como o direito pode ser manipulado para servir à dominação. A história dessas leis revela que, sob o verniz da legalidade, operava um regime profundamente autoritário, onde a repressão era legitimada pela linguagem da ordem, da segurança e da civilização. O legado dessas práticas continua a ecoar nos conflitos contemporâneos, lembrando-nos que a justiça legal, em contextos coloniais, é frequentemente menos sobre justiça do que sobre poder.