Guardem para uma série da Netflix a cena do presidente americano preso, despachando de dentro de cela com seus ministros. Se eleito, Donald Trump não será preso. A vida continua como ela é, e não como desejamos que fosse.
A decisão da Suprema Corte, que recuou e concedeu o direito à imunidade parcial a Trump, é o movimento clássico da Justiça que se encolhe por não ter armas para enfrentar grandes facínoras. Esperaram para avaliar melhor a força política do sujeito e os humores da sociedade e decidiram pelo que é mais sensato.
Não se mexe, nem em altas Cortes, com os crimes de quem está recuperando ou fortalecendo um poder político avassalador. Está nos manuais dos best-sellers sobre a degradação das democracias. A Justiça só é valente em situações que permitem valentias. Não é o caso do momento americano.
Mas é assim que funciona? Sim, é assim lá e cá. Contextos, cenários, pressões e contrapesos descalibrados, tudo interfere nas decisões da Justiça. Ou todos os chefes dos golpes estariam, lá e cá, como os manés estão, enquadrados pelos sistemas de Justiça americano e brasileiro.
A Suprema Corte recuou porque não se mexe com Trump numa hora dessas. Não há cenário nebuloso. O ambiente está bem iluminado. O que se vê é um Trump cada vez mais forte e um Joe Biden incapaz de atravessar a rua sozinho.
São sepultadas as melhores expectativas de que Trump estaria pelo menos encurralado, mesmo que não fosse condenado antes da eleição. Era falsa a sensação de que, mesmo sob domínio conservador, a Corte iria enfrentar Trump, para não ser destruída por ele mais adiante.
Suspenderam o cerco ao chefe golpista deles, assim como é frouxo o cerco ao chefe golpista brasileiro. Ah, mas dizem que Bolsonaro pode ser indiciado pelo caso das joias das arábias. Pode. Mas isso significará o quê?
Significa que podem nos oferecer como consolo que Bolsonaro será manietado por causa do cavalo de ouro e dos cartões falsificados da vacina. Mas e o golpe? O golpe fica para depois.
Também fica para mais tarde, por causa dos humores da sociedade, a deliberação do Supremo sobre a descriminalização do aborto. Porque o ministro Luis Roberto Barroso, em manifestações sinceras, anunciou que não é hora de pautar esse tema.
Nesse caso, as forças não são de um político fascista poderoso, mas as da população. E a maioria da população, diz o presidente do STF, não deseja que se fale disso agora, pela mistura de questões morais e religiosas exacerbadas.
O voto da relatora Rosa Weber, emitido em setembro do ano passado, pouco antes da sua despedida do STF, em defesa de descriminalização, fica numa gaveta, até o momento em que Barroso ou seu sucessor entenderem que há clima para que o Supremo trate do assunto. Porque falar de aborto agora é dar corda para a extrema direita.
É normal? Sim, é normal aqui, nos Estados Unidos, na Grécia e na Albânia. É assim que a Justiça anda pra frente e pra trás, ou dá empacadas por longos períodos, ou se faz de desentendida. Como nos filmes de máfia.
Como acontece com a lenta abordagem dos crimes do núcleo extremista que sustentou Bolsonaro durante quatro anos, cometendo todo tipo de desatino e crueldade, e que até agora está impune.
Porque é fácil prender, denunciar, julgar e condenar manés a 17 anos de cadeia, mas é sempre complicado fazer o mesmo com os manezões.
Como aconteceu com manés anônimos americanos e brasileiros. Com manés de grande porte, é preciso ter mais do que provas robustas. A Justiça depende do suporte da sociedade.
Foi nesse avança e empaca que a Corte deles nos induziu a pensar que, mesmo tendo maioria conservadora, e com três dos nove juízes indicados por Trump, seria possível ver prosperar a tese de que eles iriam conter o chefe da invasão do Capitólio.
Só a ralé foi contida. Prendam também Steve Bannon, como prenderam ontem, que já está bom. Trump já pode comemorar. A extrema direita mundial, excitada com o avanço da sua turma na França, também pode pôr as unhas de fora. Incluindo a extrema direita brasileira, que está viva e cada vez mais atrevida e debochada.
Publicado originalmente no Blog do Moisés Mendes