Muito antes de o turismo psicodélico transformar a Amazônia em um dos principais destinos para quem busca experiências com ayahuasca, o escritor norte-americano William Burroughs embarcou, no início da década de 1950, em uma jornada iniciática pelas selvas da América do Sul, segundo ele, movido pela busca do “barato absoluto”. Queer, filme inspirado no livro homônimo do ícone da contracultura, retrata parte dessa experiência e acaba de chegar ao streaming, na Mubi.
A ideia de viajar em busca da ayahuasca (bebida psicodélica usada por tradições indígenas há centenas de anos) surge desde o primeiro romance de Burroughs, Junkie, de 1952 (Companhia das Letras). Mas acontece de fato em Cartas do Yagé, de 1963 (L&PM), obra biográfica em que ele narra uma expedição por cidades amazônicas na Colômbia, no Peru e no Equador, realizada cerca de uma década antes.
A história é contada por meio da correspondência entre Burroughs e o poeta Allen Ginsberg, que, anos depois, seguiu os passos do amigo em sua própria busca pelo misterioso chá psicodélico.
Mas, Burroughs começa a esboçar seu plano de viajar para a Amazônia em Queer (Companhia das Letras), que antecede Carta do Yagé. “Na América do Sul, na cabeceira do Amazonas, tem uma planta chamada yagé [um dos nomes da bebida ayahuasca] que, dizem, aumenta a sensitividade telepática. Tem gente usando o negócio na medicina”, descreve o personagem William Lee – uma representação quase transparente do próprio Burroughs – no quarto capítulo do livro.
Esse é um dos muitos momentos em que o longa dirigido por Luca Guadagnino (Me Chame pelo Seu Nome”) se mantém fiel ao livro. No entanto, o diretor acrescenta uma experiência com o chá psicodélico que não existe na obra original, o que torna a trama um tanto confusa.
Marginalidade e desejo
Queer oferece uma reinterpretação do romance semi-autobiográfico de Burroughs, escrito no início da década de 1950, mas publicado apenas em 1985 por ser considerado impublicável devido ao seu conteúdo controverso. Tanto o livro quanto sua adaptação cinematográfica mergulham em questões complexas de identidade, desejo e busca existencial, navegando de forma caótica por temas como homossexualidade, drogas, amor, paixão, sexo, solidão e obsessão.
O filme, escrito por Justin Kuritzkes (Challengers), se passa em 1950, William Lee (vivido por Daniel Craig, ex-007), um expatriado americano na Cidade do México, passa seus dias quase inteiramente sozinho, exceto por alguns contatos com outros membros da pequena comunidade americana local.
Seu encontro com Eugene Allerton (Drew Starkey), um ex-soldado também expatriado, novo na cidade, mostra a ele, pela primeira vez, que pode ser finalmente possível estabelecer uma conexão íntima com alguém.
O longa preserva a narrativa de Burroughs, que reflete suas lutas pessoais, especialmente os desafios de viver a sexualidade em uma época de homofobia generalizada.
No livro e no filme, esse universo é refletido fielmente no título. Queer pode ser traduzido como “estranho” ou “esquisito”. Mas seu significado evoluiu ao longo do tempo. Nos Estados Unidos, o termo foi ressignificado pela comunidade LGBTQIA+ e tornou-se um símbolo de resistência e afirmação identitária.
No contexto do livro de Burroughs, o termo “queer” carrega uma ambiguidade intencional, refletindo tanto a marginalidade do protagonista quanto a sensação de deslocamento e desejo que permeia a narrativa. A tradução ao longo do romance — e no filme — optou por preservar também seu significado pejorativo: “bicha”.
Jornada ao desconhecido
Um dos elementos mais marcantes, tanto no livro quanto no filme, é a jornada de Lee à América do Sul em busca da ayahuasca. Mais do que uma viagem literal, trata-se de uma busca metafísica e simbólica por compreensão e transcendência.
A representação da expedição no filme é visualmente deslumbrante, contrastando as paisagens exuberantes da Amazônia com o caos interno de Lee. No entanto, como mencionado no início, o longa toma algumas liberdades, incluindo uma sessão de ayahuasca que não ocorre no texto original.
Enquanto o livro descreve uma tentativa frustrada de beber ayahuasca na selva amazônica, o filme amplifica o misticismo da experiência, retratando a bebida como um portal para a autodescoberta e o confronto com o subconsciente. Apesar de caminhar em uma linha tênue, o longa evita exotizar a ayahuasca ou reduzir seu significado cultural.
Entretanto, apesar de reconhecer as raízes indígenas do uso ritual da beberagem amazônica, o filme falha ao não explorar mais profundamente as complexidades de seu uso tradicional e as dinâmicas coloniais envolvidas na busca ocidental por salvação espiritual no conhecimento dos povos amazônicos.
Controle do pensamento
Por meio de seu alter ego William Lee, Burroughs sugere que busca a ayahuasca não apenas como uma possível cura para sua grave dependência de heroína, mas também por seus supostos efeitos psíquicos. “Um cientista colombiano, o nome me escapa agora, extraiu do yagé uma droga chamada telepatina”, afirma o personagem.
Além disso, ele menciona experimentos russos e americanos voltados para o controle do pensamento, sugerindo um interesse mais amplo nos potenciais efeitos da ayahuasca, inclusive em contextos científicos e militares.
De fato, há registros do uso de substâncias psicoativas vinculadas a interesses militares, sendo alvo de pesquisas científicas voltadas para a manipulação da mente e o controle comportamental. Como destaca o historiador Henrique Carneiro, em seu artigo “A Odisseia Psiconáutica”, o exército alemão, durante o período nazista, investigou os efeitos da mescalina (substância presente no cacto peiote) em prisioneiros de campos de concentração.
No pós-guerra, os Estados Unidos incorporaram cientistas nazistas a seus programas secretos, incluindo o médico Hubertus Strughold, principal pesquisador da mescalina, que mais tarde foi saudado pela Nasa como “o pai da medicina do espaço”.
A CIA também conduziu experimentos com psicodélicos por meio de projetos como Bluebird, Artichoke e MK Ultra, nos quais testava drogas como o LSD em voluntários e não-voluntários. O objetivo era desenvolver técnicas de controle mental, aprimorar métodos de interrogatório e até criar armas químicas para dispersão em massa.
Carneiro observa que a agência buscava substâncias capazes de “vencer a vontade e as convicções” dos indivíduos, tornando voluntário o involuntário. Ironicamente, porém, um dos participantes desses experimentos, o poeta beatnik Allen Ginsberg, tornou-se um dos críticos mais ferrenhos da política de drogas dos Estados Unidos.
Visão transgressora
Com uma trilha sonora que vai de Nirvana a Caetano Veloso, o filme “Queer”, de Luca Guadagnino, presta uma bela homenagem a Burroughs por meio da sétima arte. E faz todo sentido: sua influência vai muito além da literatura. Com uma visão transgressora, sua obra continua a ressoar na estética e na cultura pop até hoje.
Uma das principais contribuições de Burroughs para as artes é a técnica do “cut-up”, descrita nas últimas páginas de Cartas do Yagé. Provavelmente influenciado por suas experiências visionárias com ayahuasca durante as viagens pela Amazônia, o método consiste em recortar e reorganizar trechos de textos para criar novas narrativas.
O “cut-up” não apenas revolucionou a literatura, mas também influenciou diretamente a música, possivelmente inspirando o conceito de “sampling” (reutilização de trechos de músicas em novas composições).
Entre muitos outros, Burroughs foi admirado por artistas como David Bowie, que incorporou o “cut-up” em suas letras, e Kurt Cobain, com quem colaborou no disco The ‘Priest’ They Called Him (1993). No álbum, o escritor narra um conto sombrio enquanto Cobain executa uma trilha sonora densa e distorcida ao fundo.
O impacto do “cut-up” também se estendeu ao cinema, especialmente em filmes que subvertem a linearidade narrativa. Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino, com sua montagem fragmentada e estrutura não cronológica, é um dos exemplos mais marcantes dessa influência.
Ícone da contracultura
Figura monumental da geração beat — movimento pioneiro da contracultura que explodiu na década de 1950 —, William Burroughs (1914-1997) teve uma trajetória singular. Após matar acidentalmente sua esposa, mergulhou no universo das drogas e fez da literatura um território de transgressão e experimentação.
Autor de obras viscerais e inovadoras, sua escrita reflete uma vida marcada por rebeldia, excessos e uma crítica feroz às estruturas de poder, rompendo com convenções narrativas e explorando temas como alienação, controle social e estados alterados de consciência.
Em Queer, tanto no livro quanto no filme, emerge um Burroughs que não hesita em confrontar tabus sociais. Da mesma forma, a representação do uso de drogas, uma marca registrada da obra de Burroughs, é crua e intransigente.
A dependência de heroína é retratada não apenas como um vício, mas como uma muleta existencial, evidenciando o desespero e o escapismo que permeiam a obra e marcaram grande parte da vida do escritor.
No caso específico do filme, além de preservar o espírito do livro, “Queer” oferece uma nova perspectiva sobre seus temas, tornando a narrativa atemporal do autor acessível às novas gerações. Ao fazer isso, reafirma o legado de Burroughs como um pioneiro de uma revolução literária e cultural que continua desafiando convenções e instigando reflexões.