Na foto da família, o patriarca Issa e a matriarca Martina. Do lado direito de Issa, Terezinha, a mais bela moça que Poços de Caldas e região conheceram. Ao lado dela, João, o único filho de uma família com 9 mulheres. Ao lado de Martina, Deca, Clélia e Mirian. Sentadas, as caçulas Zélia, Marissa e Mirthes, mais a prima Vera. E de touca, cuidando das caçulas, a tia Sarah, a única que não se casou, e foi sempre a tia querida de todos.

Conheci a vila, na Itália, de onde partiu Gregório, no final do século 19, para caminhar a pé até o porto e atravessar o oceano. São poucas ruas encravadas em uma montanha. O pequeno cemitério ainda está lá, bem conservado. A placa inaugural é de Gregório, trisavô, e Martina.

Gregório chegou em São Sebastião da Grama, conheceu Mariquinha, da família Mesquita, tiveram vários filhos, dentre os quais, Martina.

Martina casou-se com Issa, filho de imigrantes sirio-libaneses, tiveram dez filhos. 

Issa fugiu de Grama na Revolução de 1932, quando a cidade foi invadida por tropas mineiras, e veio dar em Poços de Caldas.

Por aqui, montou um armazém de secos e molhados, comprou sua primeira casa. E enfrentou a primeira crise quando tia Miriam pegou uma doença tropical – não me lembro se malária. Para não deixá-la sozinha, isolada no quarto, vô Issa dormia com ela. Pegou malária. Para ajudá-lo a tocar os negócios, a Maçonaria indicou um contador. Em plena Segunda Guerra, com a inflação correndo solta, o contador não tinha a menor ideia sobre negócios. Não corrigia os preços dos alimentos e não conseguia repor estoques.

Quando Issa ficou de pé, o armazém já tinha acabado. Montou um bar restaurante Serigy e, com ajuda das filhas mais velhas, tratou de educar todos os filhos.

Era o local político por excelência. Em determinada noite da semana, reunia-se a UDN. Em outra noite, o PSD. Vovô era presidente da UDN, mas nem por isso deixava de ter amigos no PSD.

Um dia, foi convidado para padrinho de casamento do professor Arinos, criador da escola técnica da maçonaria na cidade. Martina estava doente e ele levou Terezinha como substituta.

Outro padrinho era Oscar Nassif, também filho de imigrantes, e pelo qual Issa já se tomara de simpatia. Segundo contemporâneas dele me contaram, era o solteiro mais cobiçado de Poços.

Tinham algo em comum. Oscar era filho de Slaib, de um grupo de cinco irmãos que saiu do Líbano no final do século 19. Três ficaram no Brasil, dois foram para a Argentina. Slaib estabeleceu-se em Rosário, contando com contatos com a indústria têxtil do Líbano. Prosperou, comprou casa em Mar del Plata, casou-se um pouco tarde com Carmen, belíssima filha de uma família libanesa ilustre de Mendoza.

TIveram cinco filhos, dentre os quais o caçula Oscar. Mas Carmen pegou tuberculose. Slaib mudou-se para Quilmes, estância climática perto de Buenos Aires, e instalou-se no Porto Madero. Quando Carmen morreu – deixando Oscar com pouco mais de um ano -, perdeu o rumo. Entrou em depressão. A família mandou um primo, tio de Armando Bogus, para tocar os negócios. Sem noção, acabou afundando tudo, obrigando Slaib a vir para o Brasil, passar por São João de Boa Vista e terminar em Poços de Caldas, onde pouco depois foi derrubado por um AVC. 

O caçula Oscar assumiu a família, teve apoio de parentes para comprar a Farmácia, estudou em Ribeirão Preto, formou-se como orador da turma. E, agora, na casa de Arinos, bateu os olhos em Teresa. Pouco depois, estavam casados.

Quando nasci, vo Issa ainda morava em uma casa com quintal grande, perto da nossa. Eu conseguia ir a pé até lá e ser pajeado pelas tias.

Sou franco em dizer: poucas crianças receberam tanto carinho. Eu era o sobrinho mais velho, filho da irmã amada. Ainda criança, Terezinha foi abatida por um reumatismo infeccioso. Depois, por um hipercolesterol. O que não a impediu de se formar na Escola Normal de Casa Branca, mas sempre ser pajeada pelas irmãs, apesar de ser uma trocista incrível.

Nos tempos do vovô em Grama, costumava subir em uma árvore e, do alto, provocar as irmãs e primas mais novas.

Não por acaso, na minha infância, eu tinha por hábito subir no telhado, com um cavaquinho, fazendo versos para irmãs e primos, que se esgoelavam lá embaixo.

Decididamente, não fui uma criança assentada. Quando lancei em Poços meu livro “O Menino de São Benedito”, minha então caçula, Luizinha, ficou rodeando a fila de autógrafos, para recolher opiniões sobre o pai, entre ex-professoras. Voltou espantada:

  • Papai, achei que você era um nerd!

O segundo testemunho foi na missa de 7o Dia de Mauro Ramos de Oliveira, o grande capitão da Copa de 1962, descoberto para o futebol por seu Oscar, diretor de futebol da Caldense. Fui com o Negão Almeida. Quando me apresentou para a viúva, seu comentário foi definitivo:

  • Cada vez que o Mauro te via na televisão, falava para mim: você não sabe como ele foi um menino capeta.

Do que me lembro bem foi quando a família do vô Issa mudou-se para o andar de cima da farmácia. No carnaval, pedi para minha avó uma bisnaga, para jogar água nos foliões. Ela deu uma bronca e fiquei sem a bisnaga.

Aí descobri uma alternativa: ir na sacada da casa e urinar. Para meu azar, urinei bem na cabeça de uma freguesa, que estava saindo da farmácia do meu pai. Seu Oscar subiu a escada correndo. Até hoje tenho a impressão de que ele mal podia conter o riso. De qualquer modo, conteve-se e me passou um sabão.

Confesso, admito, que enlouquecia todos os primos mais novos. Mas as tias sempre perdoaram minhas peripécias.

Como eu era difícil para comer, cada qual desenvolveu uma técnica para me dar comida. Tia Deca fazia o aviãozinho, tia Clélia, Mirian, Zélia e Marissa desenvolveram tipos de arroz – o único alimento que eu gostava. Revezavam-se para me levar às aulas de piano, com o professor Fábio. E acompanhavam de perto cada pequeno feito do sobrinho mais velho, filho da irmã querida.

E me tratavam como filhos até pouco tempo atrás. Quando comecei o relacionamento com Eugênia, ela conquistou minhas tias na hora, inclusive porque Guaranésia é vizinha a Grama.

Na primeira visita à tia Clélia, a tia deu conselhos para ela:

  • Olha, se meu sobrinho chegar cansado à noite, não fica perguntando o que ele fez, onde ele estava. Ele é muito trabalhador e chega cansado.

Quando demoramos a decidir pelo casamento, tia Clélia não titubeou. Chamou Eugênia de lado e sugeriu:

  • Porque você não engravida?

Guardo de cada uma a lembrança mais querida. Dos 10, só restam 3. A primeira que partiu foi a dona Tereza. Depois, tia Deca. Depois, o tio João, que era meu ídolo maior na infância. Ele mudou-se cedo para São Paulo. Quando vinha a Poços visitar os pais, eu pressentia na hora.

A única que ficou em Grama foi tia Mirian. Quando comecei o relacionamento com Eugenia, telefonei para a tia Mirian dizendo que ia almoçar com ela em Grama. E a tia Mirian:

  • Sobrinho, ela não é enjoada, né?

Depois, havia o grupo das caçulas. Tia Jane, que se foi há pouco, era uma apaixonada por religiões. Era capaz de mudar de católica fanática, para espírita fanática, depois voltar a ser católica fanática.

Quando  descobriu o Facebook, fiquei amigo dela e levei um susto com uma frase sua:

  • Estava escrito que Deus iria nos mandar um salvador com o nome de Messias.

Gelei. Até que, um mês depois, ela soltou outra frase:

  • Estava escrito, Satanás viria na forma de um messias.

Respirei aliviado.

Depois veio a tia Zélia, cujo casamento, com o jornalista Luiz Fernando Mercadante, foi um comício: o padrinho dele era Carlos Lacerda e dela era Bilac Pinto.

Não era para menos. Vô Issa tornou-se presidente da UDN, amigo pessoal de Lacerda, de Juarez Távora. Logo que sofreu o atentado da rua Toneleros, a primeira coisa que Lacerda fez foi telefonar para minha avó – e os telefonemas levavam horas para se completar – para dizer que foi salvo pelo Salmo 90, com o qual ela o presenteou.

Mas vó Marta não era a esposa submissa não. Com seu jeito pacífico, mandava no vô Issa.

Lembro no final da vida dela, todo mês ia à Vila Maria para visitá-la. Um dia ela me contou o que vô Issa aprontou com o dr. Martinho.

Martinho tinha sido prefeito de Poços e, além de santo – pediatra, em seu consultório atendia a quem podia pagar e a quem não podia – era compadre e o melhor amigo de meu pai.

Pois vovô, dotado da chama lacerdista, fez uma campanha implacável contra Martinho. Vovó dava os detalhes:

  • Meu neto, foi tão feia a campanha que minhas amigas da Igreja fizeram uma vaquinha para publicar um protesto contra seu avô no jornal da cidade.
  • Eita vó, e como a senhora ficou nessa?
  • Eu tinha um dinheirinho guardado e ajudei na vaquinha.

Foi na casa da tia Zélia que consegui meu primeiro emprego. Ela tinha se separado há muitos anos do Luiz Fernando. Perdi contato com ele. Mas venci o Festival de Música de Casa Branca e uma das juradas era jornalista da revista Realidade. Quando contou para a revista do festival, Luiz Fernando se surpreendeu:

  • É meu sobrinho!

De fato, ele ficou doente no Rio e voltou para Poços com a tia Zélia, ficando um tempo curto por lá.

Toda semana Fernando ia almoçar com a tia Zélia e rever os dois filhos. Quando cheguei a São Paulo, ele mandou me convidar para o almoço. No primeiro semestre, conseguiu um estágio no Jornal da Tarde. Mas não pude aceitar porque tinha sido selecionado para o período da tarde na ECA (Escola de Comunicações e Artes).

No segundo semestre consegui mudar para a manhã. E, num almoço na tia Zélia, ele levou o Secretário de Redação de Veja, Luiz Garcia. Foi através dele que consegui meu primeiro estágio.

Logo mais estarei na Vila Maria para uma Sarrafada – um encontro da família Sarraf. Somos 54 pessoas, entre filhas, netos, bisnetos. Estarão lá tias Clélia, Sara, Zelia e Marissa. E muitas lembranças.

Issa e Martina nos passaram muitos valores: o sentimento de família, a solidariedade com os vulneráveis, o sentimento de país. 

Outro dia passaei em frente o sobradinho da rua da Gávea, onde moraram depois que se mudaram para São Paulo. É pequeno. Mas, na memória de todos os netos, era imenso, do tamanho do coração do casal.

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Last Update: 22/02/2025