Internet, do paraíso ao inferno III

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Nos anos 1990, havia programas como “Você decide” da Rede Globo de Televisão. Nele, elencavam-se dois ou três epílogos para um tema polêmico e os espectadores votavam pelo telefone, sempre ligando para um número que terminava forçosamente pelo algarismo correspondente à opção desejada. Isso reduzia significativamente o tempo de resposta, além de automatizar a apuração, bastando que um arquivo do banco de dados da emissora somasse 1 a cada ligação. Era um protocolo de comunicação que não garantia que o interlocutor tivesse entendido a mensagem, muito menos que a resposta fosse consciente, ou seja, um feedback inseguro, até irrelevante. Pelo lado do receptor votante, ou emissor do voto, o feedback da emissora também não era seguro, pois ela poderia manipular os dados conforme suas intenções. Como protocolo de comunicação, “Você decide” era nota 0 porque permitia que ambos lados falseassem a mensagem. Notem que, no exemplo acima, se o camarada não tivesse telefone, não votaria, ou seja, se a telefônica não atribuísse um número para cada um dos envolvidos, a brincadeira acabava antes de começar.

A Internet Adresse Number Authority (IANA), é como uma telefônica mundial, porém, com uma abrangência infinitamente maior porque é ela que dá nome aos pontos de presença intermediários. Usando o exemplo das torres napoleônicas, é a IANA que faz o papel de Napoleão, atribuindo-lhes nomes. Dá até para dar outro exemplo. É a IATA que atribui os códigos de três letras para os aeroportos. Se ela, de um momento para o outro, decidir que todos os aeroportos de uma dada região perderam seus distintivos, nenhum avião vai conseguir pousar. Decolar ele pode, mas pousar não. Como decolar é opcional e pousar é obrigatório, não se voa.

Voltando a Conde de Monte Cristo, bastou subornar um operador de somente uma torre para alterar uma mensagem para que o personagem de Dumas, morador em Paris, desse um golpe em Lion. Foi uma Fake News como tantas que vemos pelas redes sociais. Basta que um participante da rede altere o acontecimento, seja por montagem, seja por corte, para todos os receptores estarem sujeitos a um golpe informacional, não necessariamente comercial como no romance citado. Então, o golpista poderá ser preso, caso as leis locais considerem que ele tenha cometido um crime. Ocorre que, via VPN, ele pode usar um endereço IP que indique que ele não está no país, portanto, isento de cumprir suas leis. É justamente isso que torna a Internet numa terra de ninguém.

Uma VPN tem a capacidade de mascarar os endereços IP público de um dado grupo de usuários, atribuindo-lhes IP privados, como se todos estivessem numa mesma rede local. Isso é extremamente útil para garantir que os dados que ali trafeguem sejam mais seguros, visto que à VPN se podem aplicar recursos como antivírus e firewalls (softwares que impedem que mal intencionados adentre secretamente as redes). Assim, elas são imprescindíveis para que se continuem a fazer negócios pela Internet. Ao mesmo tempo, não se pode abrir mão da soberania nacional, permitindo que usuários se ponham fora do alcance da lei.

O problema é ainda mais grave do que se viu até agora. A exemplo do que foi descrito para os aeroportos, para as telefônicas e para as torres napoleônicas, a IANA pode, conforme os interesses dos Estados Unidos, tornar inválidos todos os endereços IP do bloco destinado ao Brasil, praticamente desligando o país. Nenhuma transação bancária seria levada a cabo, nenhuma transação comercial seria concluída. Seria o retorno aos anos 1960, com todos os celulares servindo somente como pesos para papel – muito papel, mais do que existe hoje no mercado. Aliás.

Foi justamente para obrigar os moradores a cumprir a lei, ao mesmo tempo em que se resguarda o funcionamento do país, que Índia, China e Rússia criaram seus equivalentes à IANA. Elas não tiveram grande dificuldade, visto que sempre tiveram quem administrasse internamente o bloco de endereços fornecidos por aquela instituição americana. O grande investimento correspondeu à instalação de porteiras, também conhecidas como gateways para controlar a entrada e saída de informações em território nacional. É como uma alfândega informacional, permitindo adjacentemente que se cobrem impostos pelo fluxo de entrada e saída de dados, exatamente como se faz com qualquer mercadoria.

Assim como cabe às alfândegas zelarem para que não circulem mercadorias ilícitas, caberia aos administradores dos gateways instalar dispositivos de segurança como antivírus e firewalls para proteger a rede nacional, evitando que, como aconteceu em 2013, a presidência da República seja grampeada, ou informações militares sensíveis à defesa nacional vazem, como têm acontecido reiteradamente.

Mais que imprescindível, é urgente que o Brasil tome todas as providências para internalizar a criação e concessão de endereços IP, mantendo o padrão internacional que nos permita ficar em comunicação com o mundo que nos cerca, porém, com toda a segurança de que carecemos, como veremos no próximo capítulo.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

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Última Atualização: 10/09/2024