A Influência da Virtualidade nas Decisões Jurídicas e Políticas: Limites e Ilusões

por Eduardo Appio

Prolegômeno

Em uma era de conexão constante, é tentador acreditar que a voz estrondosa das redes sociais pode determinar rumos políticos e judiciais. Tribunais virtuais se formam diariamente no foro on-line, julgando reputações e clamando por justiça imediata. Milhares de curtidas e compartilhamentos dão a impressão de um poder popular irresistível – uma espécie de soberania digital exercida pelo tribunal da opinião pública. No entanto, persiste a pergunta: essa mobilização virtual tem legitimidade e efetividade para influir nas decisões das instituições do Estado de Direito? Ou seria em grande medida uma ilusão de soberania, um poder meramente simbólico que esbarra nos limites do ordenamento jurídico e das estruturas reais de poder? Este artigo de opinião examina essa tensão entre o clamor digital e a autoridade institucional, percorrendo fundamentos teóricos, evidências empíricas e reflexões jurídicas sobre o tema.

Fundamentação Teórica

Realidade, Soberania e Legitimidade no Contexto Digital

No âmbito filosófico, a distinção entre o real e o virtual ganha novos contornos na era digital. Pensadores contemporâneos observam que as redes sociais frequentemente criam uma hiper-realidade em que representações simbólicas são tomadas como realidade concreta. O sociólogo Jean Baudrillard, por exemplo, já alertava que, na sociedade midiatizada, as simulações podem suplantar o real, gerando signos sem referente e uma sensação de realidade paralela​. Transposto ao cenário político, esse fenômeno implica que a popularidade on-line ou o clamor virtual podem ser percebidos (pelos participantes) como exercício de poder soberano, ainda que careçam de legitimidade institucional.

A questão da soberania – quem detém o poder de fato para decidir – torna-se nebulosa no mundo digital. A tradição política moderna, de Hobbes a Rousseau, vinculou a soberania ao povo organizado em um Estado, investido em instituições legítimas. Já no espaço virtual, muitos indivíduos acreditam deter uma parcela direta desse poder ao engajarem-se em campanhas on-line e ao proclamarem verdades em nome de uma suposta vontade geral da internet. No entanto, teóricos apontam para uma verdadeira “ilusão de soberania” nesse contexto: os atores digitais podem sentir-se “mestres de seu próprio destino” ao navegar sem barreiras e opinar livremente, “sem perceber que, na realidade,” as rédeas do poder efetivo permanecem em outros lugares​. Em outras palavras, a liberdade da arena digital é sedutora, mas não equivale à autoridade legítima para tomar decisões vinculantes no mundo jurídico-político. Assim, é preciso distinguir legitimidade simbólica – conferida pela aprovação difusa na internet – da legitimidade jurídica e política – conferida pelo devido processo e pela soberania estatal reconhecida.

Poder Simbólico versus Poder Efetivo na Era Digital

O antropólogo Pierre Bourdieu definiu o poder simbólico como a capacidade de usar símbolos, crenças e narrativas para moldar a percepção da realidade e obter reconhecimento e obediência sem coerção física. Na era das redes, o poder simbólico ganha escala inédita: uma hashtag influente ou um meme viral podem reformular debates e gerar consenso aparente. No entanto, como lembra Bourdieu, esse poder só se concretiza se for reconhecido pelos outros agentes sociais – e seu efeito é sutil, não imediato​. Já o poder efetivo – aquele que produz consequências materiais diretas, como a promulgação de leis ou a execução de uma sentença – permanece atrelado a mecanismos institucionais (o Parlamento, os tribunais, o Executivo com seu monopólio da força legítima etc.).

Na prática, a internet pode amplificar vozes e conferir a determinados grupos um peso simbólico desproporcional à sua representação formal. Esse descompasso levanta questões: trending topics seriam uma nova forma de “vontade geral”? Ou trata-se de mobilização superficial, sem a estrutura necessária para se converter em ações coordenadas e duradouras? O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em “No Enxame”, argumenta que a multidão digital – aquilo que ele chama de “enxame” – difere da massa tradicional porque é formada por indivíduos atomizados e efêmeros. Segundo Han, a massa conectada on-line gera muito ruído, mas carece de coesão e capacidade decisória coletiva. “Eles dissolvem de maneira tão rápida quanto surgiram. Por causa dessa efemeridade, eles não desenvolvem nenhuma energia política”, observa Han​. Em suma, a viralidade confere visibilidade (poder simbólico), mas não necessariamente autoridade ou eficácia (poder efetivo). O clamor on-line pode constranger atores institucionais pelo medo de desgaste público, mas não os obriga legalmente a nada – a não ser que mecanismos formais sejam acionados.

Esse contraste aparece nitidamente nos movimentos de ativismo digital. Enquanto protestos de rua e articulações políticas tradicionais exigem organização, lideranças e riscos concretos, o ativismo de sofá (ou slacktivism) facilita demonstrações de apoio com um clique, sem grande custo ou compromisso. Estudos sugerem que esse engajamento de baixa intensidade raramente se traduz em mudanças estruturais: muitas petições virtuais e campanhas de hashtag terminam em frustrante inação, servindo mais para desabafo coletivo do que para resultado político​. Trata-se, portanto, de um poder de pressão difuso e volátil – um poder simbólico que pode até influenciar o discurso (pautar a mídia, sensibilizar autoridades), mas que esbarra no filtro das instituições, onde reside o poder efetivo de decidir.

“Tribunais Digitais” e a Opinião Pública vs. Processos Institucionais

A metáfora dos “tribunais digitais” tornou-se corrente para descrever julgamentos sumários feitos na internet. Nas redes, a opinião pública virtual analisa “provas” (frequentemente vídeos editados ou notícias enviesadas), emite vereditos fulminantes e clama por sentenças exemplares – tudo isso alheio às garantias processuais e aos fatos apurados exaustivamente como se requer na Justiça tradicional. Esse fenômeno reflete o poder simbólico em ação: a reputação de uma pessoa ou a legitimidade de uma decisão podem ser destruídas on-line sem que nenhum rito formal tenha ocorrido. Há, portanto, um choque de lógicas entre dois sistemas: de um lado, a justiça institucional, regida por leis, procedimentos, direito de defesa, provas e instâncias; de outro, a justiça da multidão on-line, imediatista e movida pela emoção e pela lógica do engajamento.

Filósofos políticos lembram que legitimidade difere de popularidade instantânea. Max Weber definia a autoridade legítima como aquela reconhecida conforme regras estabelecidas (legal-racional, tradicional ou carismática). Um trending topic pode sugerir uma forma de legitimidade carismática difusa, mas não possui validação constitucional. A “sentença” proclamada por um tribunal das redes não tem força coativa – seu impacto se dá via constrangimento moral ou pressão política indireta. Muitas vezes, essa dinâmica cria a ilusão de justiça paralela: acredita-se que a condenação virtual de um corrupto ou a aclamação on-line de um candidato equivalham a justiça efetiva, quando na realidade a decisão válida acontecerá nas cortes ou nas urnas, conforme procedimentos legais.

Pesquisadores apontam ainda para o risco de usurpação simbólica: movimentos digitais tentam se arrogar a representação do povo, mas carecem de mecanismos de accountability e inclusão abrangente. Afinal, quem participa dos debates on-line? Pesquisas indicam que uma parte significativa da população nem sempre está conectada ou engajada, o que torna a “vontade do Twitter” algo diferente da vontade popular no sentido amplo​ (revistas.pucsp.br).

Em outras palavras, a esfera virtual tende a refletir bolhas e grupos altamente mobilizados, e não necessariamente o corpo político inteiro. Assim, os “tribunais digitais” sofrem de déficit de representatividade e legitimidade, por mais barulhentos que sejam. Eles servem como termômetro da opinião (ao menos de segmentos vocalizados), mas não podem substituir os tribunais de Direito nem os parlamentos, sob pena de romper-se o pacto fundamental da democracia representativa e do Estado de Direito.

Evidências Empíricas

Limites do Poder Digital na Decisão Político-Institucional

Exemplos concretos dos últimos anos ilustram como a mobilização virtual esbarra nos freios e contrapesos institucionais – às vezes provocando reação proporcional do sistema jurídico-político para reafirmar sua primazia. Por um lado, as redes sociais provaram ter influência na formação de narrativas e até na convocação de protestos de rua (como vimos nas Primaveras Árabes ou em manifestações no Brasil em 2013). Por outro lado, quando se trata de decisão final – anular uma eleição, mudar um veredicto judicial, aprovar ou barrar uma lei – as iniciativas nascidas exclusivamente no mundo digital frequentemente fracassaram ou tiveram efeito limitado.

Um caso emblemático é o das eleições norte-americanas de 2020: milhões de tweets e posts questionando o resultado eleitoral alimentaram teorias de fraude e culminaram na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Apesar do enorme engajamento virtual e do clamor de grupos mobilizados on-line para “Stop the Steal”, as instituições democráticas resistiram: tribunais estaduais e federais rejeitaram sumariamente ações sem provas e o Congresso confirmou o resultado eleitoral. A mobilização digital, por mais intensa que tenha sido, não conseguiu subverter o processo institucional. O mesmo ecoou no Brasil em 2022/2023, quando movimentos digitais similares contestando a vitória presidencial levaram à invasão das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Novamente, o poder formal reagiu com firmeza: centenas de envolvidos foram presos e denunciados, e nenhuma mudança política se operou em favor dos manifestantes. O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, posteriormente afirmou que a narrativa dos que apoiaram o golpe fracassado “não haverá de prevalecer”, ressaltando que o Supremo continuará cumprindo seu papel de guardião da democracia sem temer nem a verdade nem a mentira​ (cartacapital.com.br). Essa resposta evidencia os limites do poder digital: a indignação on-line produziu caos temporário, mas não legitimou qualquer alteração institucional – ao contrário, fortaleceu a determinação das autoridades em fazer valer a lei.

O Confronto de Elon Musk com o STF Brasileiro

Nenhum personagem encarna melhor a tensão entre poder digital de fato e poder estatal do que Elon Musk, magnata da tecnologia e proprietário da plataforma X (antigo Twitter). Musk, defensor fervoroso de uma visão absolutista da liberdade de expressão na internet, entrou em rota de colisão com o sistema jurídico brasileiro ao tentar desafiar decisões judiciais. Durante as investigações sobre fake news e ataques contra a ordem democrática no Brasil, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou o bloqueio de diversos perfis de aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro que propagavam desinformação. Após adquirir o Twitter, Musk sinalizou que removeria as restrições impostas a esses perfis pelo STF​ (brasildefato.com.br), num ato claro de enfrentamento: a autoridade da plataforma global tentando suplantar a autoridade da Justiça brasileira.

A resposta institucional foi rápida e contundente. Alexandre de Moraes ordenou que a empresa nomeasse um representante legal no Brasil para responder às ordens judiciais, sob pena de suspensão total da plataforma em território nacional​. Diante da recalcitrância inicial (Musk chegou a fechar o escritório local da empresa, demitindo funcionários, em aparente protesto), Moraes efetivamente determinou a suspensão do serviço por descumprimento da legislação brasileira​. Essa medida sem precedentes deixou claro que, apesar do poderio econômico e tecnológico de Musk, a soberania nacional prevaleceria: se a plataforma não seguisse as leis do país, seria banida do mercado. Em poucos dias, o X recuou e indicou representação formal, além de pagar todas as vultuosas multas resultantes de sua revolução particular, evitando uma desconexão que afetaria milhões de usuários brasileiros.

Esse episódio demonstrou, de forma inequívoca, os limites do poder digital empresarial diante do Estado de Direito. Musk, acostumado a ditar regras no universo corporativo e a atender aos clamores de sua base on-line, deparou-se com a realidade de que nenhuma empresa está acima da lei. A ilusão de que uma rede social global poderia operar num vazio jurídico revelou-se insustentável. Além disso, a postura de Moraes – respaldada pelos demais poderes nacionais – enviou um recado além-fronteiras: a ordem institucional não se curva a celebridades digitais, ainda que essas controlem os canais de comunicação modernos. Trata-se de um reafirmar da soberania efetiva: dentro do território (físico e jurídico) brasileiro, quem transgride ordens judiciais enfrenta as consequências, seja um cidadão comum, seja o bilionário dono da plataforma.

Donald Trump, Rumble e a Reação em Defesa da Soberania

Outro caso emblemático envolvendo a colisão entre poder digital e poder institucional diz respeito ao presidente dos EUA Donald Trump – mais precisamente, à sua empresa de mídia e aliados – e o Supremo Tribunal Federal brasileiro. Em 2023 e 2024, decisões do ministro Alexandre de Moraes visando conter a desinformação e discursos golpistas alcançaram plataformas estrangeiras populares entre apoiadores de Trump e Bolsonaro, como a rede de vídeos Rumble e a própria Trump Media (responsável pela Truth Social). Em reação, essas empresas acionaram a Justiça norte-americana e lobistas políticos para alegar que Moraes estaria impondo censura e violando a liberdade de expressão de cidadãos dos EUA em solo americano​. Legisladores alinhados a Trump chegaram a propor na Câmara dos EUA o projeto de lei “No Censores on Our Soil” (“Sem censores em nosso território”), claramente mirando restringir ações de magistrados estrangeiros – personificados em Moraes – que afetassem usuários ou empresas sediadas nos Estados Unidos​.

A movimentação inusitada – um presidente americano e suas empresas tentando interferir nas decisões de um juiz brasileiro – provocou forte reação do sistema jurídico-político do Brasil. Em fevereiro de 2025, o ministro Alexandre de Moraes repudiou publicamente a “tentativa de interferência” dos EUA no Judiciário brasileiro, bradando em sessão que o Brasil não é colônia e afirmando a soberania nacional e a independência do Poder Judiciário frente a pressões externas​. Sua fala – “deixamos de ser colônia em 7 de setembro de 1822” – ecoou um sentimento transversal nas instituições brasileiras, unindo ministros de diferentes matizes. O próprio presidente do STF, Luiz Roberto Barroso, manifestou apoio a Moraes e criticou aquilo que chamou de narrativa estrangeira para deslegitimar as ações do Supremo​. Barroso enfatizou que o Tribunal continuará a proteger a Constituição e a democracia, não temendo a verdade nem mesmo a mentira propalada por quem tentou o golpe de 8 de janeiro​. Em outras palavras, a resposta institucional foi reforçar que a Justiça brasileira atua dentro de suas prerrogativas legais para defender a ordem democrática, e não aceitaria lições ou intimidações vindas de fora.

Concretamente, a ação coordenada de Trump e Rumble fracassou em produzir qualquer recuo por parte do STF. Pelo contrário, Moraes intensificou medidas: determinou a suspensão temporária do acesso ao Rumble em território brasileiro quando a plataforma deixou de ter representante legal no país​, e manteve as ordens de retirada de conteúdo ilícito, esclarecendo que se dirigiam a usuários e operações no Brasil, não ao governo americano​. Assim, a tentativa de utilizar o peso político do mandatário norte-americano e o fervor das redes de direita global esbarrou no muro da legalidade brasileira. Ficou patente que, ainda que Trump goze de enorme influência sobre milhões de seguidores on-line e que suas empresas tentem travar uma guerra jurídica transnacional, a autoridade para decidir sobre assuntos da jurisdição brasileira pertence exclusivamente às instituições brasileiras. Novamente, o poder digital (neste caso, respaldado até por poder político estrangeiro) mostrou-se incapaz de subjugar o Estado de Direito quando este se mostra coeso e assertivo em defesa de sua autonomia.

Mobilização Virtual e Impacto em Políticas Públicas

É inegável que a mobilização virtual tem impacto na arena política – mas frequentemente de forma indireta e mediada. Nas democracias contemporâneas, opinião pública e vontade popular são fatores que os representantes eleitos consideram, e as redes sociais se tornaram parte do barômetro da opinião pública. Petições on-line já motivaram debates parlamentares; campanhas em massa no Twitter ou Facebook sobre certos temas (ambientais, direitos civis, corrupção) às vezes resultaram em audiências públicas, CPIs ou projetos de lei. No entanto, estudos de ciência política e comunicação vêm mostrando que raramente a mobilização virtual isolada implementa políticas públicas concretas. É necessária uma tradução institucional – pela via de partidos, líderes ou organizações da sociedade civil – para que a energia difusa da internet se transforme em normas ou ações governamentais.

Um exemplo positivo ocorreu no Brasil em 2019 com a campanha #MeTooBrasil, que trouxe à tona casos de assédio e pressionou por protocolos de proteção a mulheres; ainda assim, as mudanças ocorreram via decretos e leis aprovadas pelo Congresso, não por ato espontâneo da internet. Em contraste, há exemplos de clamor digital que não se converteram em política: mobilizações contrárias a reformas econômicas polêmicas geraram milhões de comentários on-line, mas se não encontraram eco suficiente no Legislativo, acabaram arquivadas junto com as hashtags esquecidas. Isso evidencia que a influência virtual precisa acoplar-se aos canais de representatividade para ganhar efetividade. Dados empíricos confirmam essa tendência: pesquisadores verificaram que abaixo-assinados eletrônicos e movimentos de clicktivism produzem muita visibilidade inicial, porém têm alto índice de dispersão e desistência, a menos que sejam acompanhados de engajamento offline e pressão direta consistente​. A opinião pública digital tornou-se parte do jogo político, mas dificilmente o vence sozinha – seu impacto reside em pautar, alertar e às vezes constranger os tomadores de decisão, mas a palavra final ainda cabe às instâncias legitimadas pelo voto e pela lei.

Análise Jurídica

O Estado de Direito Diante das Pressões Digitais

Diante desse panorama, como o Estado de Direito vem respondendo às pressões oriundas do mundo digital? A resposta, até aqui, tem sido com uma combinação de resiliência de princípios e adaptação de instrumentos. Fundamentalmente, o Princípio da Independência Judicial e o devido processo legal são os escudos normativos que protegem as decisões jurídicas contra vendavais de opinião momentânea. Juízes são constitucionalmente resguardados para decidirem conforme a lei e a prova dos autos, não segundo aplausos ou vaias virtuais. Como afirmou o ministro Luís Roberto Barroso, “em matéria penal não há espaço […] para clamor público e menos ainda para ouvir a voz das ruas”​. Essa declaração explicita que um magistrado não pode se desviar da justiça para agradar ou apaziguar a multidão, pois fazê-lo comprometeria a essência do julgamento justo. No mesmo diapasão, o decano Celso de Mello advertiu que a Corte “não pode deixar-se influenciar pelo clamor popular nem pela pressão das multidões, sob pena de abalar direitos e garantias individuais”​. Ou seja, ceder à turba – física ou virtual – significaria trair a Constituição, que assegura julgamentos imparciais. Tais pronunciamentos de membros do STF, em momentos de intensa comoção nacional, constituem precedentes morais e jurídicos importantes: fixam que a legalidade não será dobrada pelo trending topic do dia.

No âmbito político, o Estado de Direito conta com o princípio da soberania popular mediada – isto é, o povo exerce seu poder por meio de representantes e dentro das regras constitucionais. Essa mediação cria filtros institucionais (debates parlamentares, comissões, vetos presidenciais, controle de constitucionalidade) que impedem mudanças abruptas ao sabor de emoções coletivas transitórias. Assim, ainda que haja uma petição on-line com milhões de assinaturas exigindo certa lei, esta deverá trilhar o procedimento legislativo ordinário, submetendo-se a discussões técnicas e políticas. Esse ritmo mais lento e deliberativo funciona como antídoto contra a volatilidade das ondas virtuais. A pressão digital pode até acelerar tramitações (parlamentares são sensíveis ao clamor de seus eleitores nas redes), mas não elimina etapas essenciais. Em última instância, o Estado de Direito responde às pressões digitais reafirmando seus valores: transparência, justificativa das decisões e abertura ao diálogo, mas sem abdicar dos crivos racionais. Como bem sintetizou Hannah Arendt, a legitimidade de qualquer poder reside em última instância em sua capacidade de permanecer vinculado a princípios e não à mera vontade momentânea, o que no contexto atual significa não se deixar governar pelo impulso das massas on-line.

Princípios Constitucionais e Resiliência Institucional

Os embates recentes testaram a resiliência de princípios constitucionais clássicos frente às investidas digitais. Um deles é o princípio da legalidade: nada supera a lei como fonte de obrigação. Quando influenciadores digitais ou movimentos virtuais tentam “forçar a barra” para obter um resultado à revelia da lei, as instituições têm recorrido exatamente ao valor da legalidade para contê-los. No caso Musk, a Constituição Federal e o Marco Civil da Internet forneceram base para exigir um representante legal e impor sanções a quem descumprisse ordem judicial – o recado foi que a legalidade não seria relativizada por alegações de “nova era digital”. No caso Trump/Rumble, o princípio da soberania nacional (art. 1º da CF/88) e da jurisdição territorial foram levantados como escudo: a legislação brasileira se aplica para proteger nossos cidadãos, ainda que isso contrarie interesses estrangeiros, e nenhuma legislação ou lobby de outro país pode invalidar decisões aqui tomadas legitimamente​.

Outro princípio fundamental é o da separação de Poderes. As campanhas virtuais às vezes tentam embaralhar as esferas, pressionando o Judiciário como se este devesse prestar contas diretamente ao público. Contudo, nas democracias, o Judiciário presta contas à Constituição e por seus fundamentos (as decisões são públicas e motivadas) e por mecanismos próprios (correição, recursos, etc.), não por plebiscitos instantâneos. Ao manter decisões impopulares nas redes, porém juridicamente corretas, os tribunais reforçam a separação de poderes – mostram que não serão convertidos em instâncias reféns da opinião volátil. Por exemplo, mesmo sob enxurrada de críticas on-line, o STF brasileiro tomou decisões técnicas importantes (como validar medidas sanitárias na pandemia, ou garantir direitos de minorias) invocando a Constituição acima de humores do momento. Essa postura coesa cimenta a confiança de que princípios como devido processo, presunção de inocência e isonomia permanecem intactos perante tempestades digitais.

Vale mencionar também o equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção institucional. A Constituição consagra a livre manifestação do pensamento, mas também protege a honra, a segurança nacional e o funcionamento harmônico das instituições. Quando mobilizações digitais resvalam para a ameaça, difamação ou incitação ao crime, entram em colisão com outros valores constitucionais. Os tribunais têm então a árdua tarefa de calibrar respostas: bloquear um perfil conspiratório, prender quem atenta contra a democracia on-line, sem ferir indevidamente a liberdade de expressão legítima. O histórico recente mostra uma tendência a não contemporizar com delitos digitais graves: pessoas que realizaram ameaças de morte a ministros nas redes foram investigadas e punidas; organizações que espalharam notícias sabidamente falsas para sabotar a fé pública sofreram buscas e apreensões. Essas ações se amparam no entendimento de que a liberdade na internet não é absoluta – há limites legais, e cruzá-los acarreta punição no mundo físico. Trata-se, portanto, de aplicar os mesmos princípios constitucionais de sempre (segurança das instituições, devido processo) a novas arenas tecnológicas.

Primazia das Instituições: Decisões Judiciais Exemplares

Por fim, é elucidativo citar decisões e posicionamentos judiciais concretos que reforçam a primazia das instituições sobre as mobilizações virtuais. Um marco icônico foi o já mencionado voto do ministro Celso de Mello na AP 470 (caso “Mensalão”) em 2013. Sob imenso clamor popular por punições imediatas aos réus, Celso de Mello desempatou o julgamento em favor de conceder um recurso (embargos infringentes) a alguns condenados, seguindo estritamente o regimento do STF. Sua justificativa, além de técnica, foi um libelo em prol do direito de defesa contra a sanha das multidões: “[Juízes] não podem deixar-se contaminar por juízos paralelos resultantes de manifestações da opinião pública que objetivem condicionar a manifestação de juízes e tribunais”, escreveu o decano, sob pena de se negar aos acusados o direito a um julgamento justo​. Essa decisão foi impopular nas redes, mas exemplar em reafirmar que o devido processo prevalece sobre o julgamento midiático.

Em contexto mais recente, decisões do STF relacionadas ao combate à desinformação também afirmaram a supremacia do processo legal. No Inquérito 4781 (das fake news), a Corte determinou a censura – termo técnico de bloqueio – de contas que coordenavam ataques contra a democracia. Embora setores da opinião virtual acusassem o STF de cercear a liberdade de expressão, as medidas foram referendadas pelo plenário com base na defesa da ordem constitucional. A mensagem subjacente era clara: nenhuma campanha on-line poderia intimidar o Judiciário ou paralisar as investigações em curso. De fato, algumas das figuras bloqueadas (com grande séquito na internet) tentaram se vitimizar publicamente, mas acabaram silenciadas pelo peso das evidências quando os processos vieram à tona. Em julgados relativos a essas matérias, ministros apontaram que a liberdade de expressão não abarca imunidade para destruir as próprias premissas do Estado de Direito, como a integridade das eleições ou o respeito às decisões judiciais​.

Também no Poder Legislativo e Executivo houve demonstrações de respeito institucional acima de pressões digitais. Parlamentares que cederam a massas virtuais (por exemplo, apoiando pautas radicalizadas de ocasião) viram-se depois isolados politicamente quando a conjuntura mudou – revelando que Twitter não vota leis, nem nomeia ministros sem aval formal. Presidentes, por sua vez, aprenderam que governar por enquetes de redes sociais é caminho arriscado: a legitimidade do cargo advém das urnas e se consolida na observância das instituições de controle, não em likes. O próprio ex-presidente Bolsonaro, bastante ativo em redes, descobriu que lives inflamadas não impediam investigações legais contra seus aliados ou a cobrança de órgãos como TSE e STF. No balanço final, as instituições perduraram, enquanto trending topics vêm e vão.

Conclusão

O embate entre a virtualidade e as decisões jurídico-políticas revela, em última análise, um paradoxo contemporâneo: nunca foi tão fácil expressar opiniões e mobilizar apoios – e nunca foi tão patente a necessidade de filtros institucionais para que essas opiniões não degenerem em aventuras contra a ordem constitucional. A esfera digital democratizou a voz, deu protagonismo a narrativas antes marginais e gerou a impressão de que o poder emana diretamente de cada curtida e compartilhamento. Contudo, a experiência recente – iluminada pela fundamentação teórica e pelos casos práticos aqui discutidos – mostra que esse poder digital tem limites claros. Simbólico, sim; efetivo, nem tanto. A soberania, em seu sentido efetivo, permanece ancorada nas estruturas legitimadas pelo pacto constitucional, e não cede seu cetro aos trending topics sem resistência.

Longe de desprezarmos a importância da opinião pública virtual – que pode e deve influenciar o debate democrático –, é preciso colocá-la em perspectiva. A indignação de milhões nas redes é um dado político relevante, mas não um veredito jurídico. O Estado de Direito, com seus ritmos e contrapesos, atua como contraforte a impulsos momentâneos, assegurando que decisões de alto impacto não sejam tomadas no calor de uma “reunião de WhatsApp”, mas sim à luz da lei e da razão. Como bem assinalou o ministro Barroso, “o STF continuará a cumprir o seu papel de guardião da Constituição Federal e da democracia”, não importando quão estridente seja a turba digital​. Essa postura garante que os direitos de todos – inclusive das minorias momentaneamente impopulares – sejam preservados contra o vaivém das maiorias circunstanciais no ambiente on-line.

Em síntese, a influência da virtualidade nas decisões jurídicas e políticas existe e veio para ficar, mas ela se efetiva de modo mediado e limitado. A opinião pública digital pode acender luzes sobre problemas e até impulsionar soluções, porém a primazia das instituições é fundamental para converter clamor em ação legítima. Se a era digital nos ensinou algo, é que nem toda tendência virtual vira realidade – especialmente quando essa realidade é guardada pelas sentinelas da legalidade. A legitimidade construída com esforço, coragem e respeito às regras não se dissolve em bytes. E, ao final do dia, é isso que sustenta uma democracia saudável: instituições fortes o bastante para ouvir a sociedade, mas também para resistir às paixões passageiras, mantendo firme o leme do Estado de Direito.

Referências (diretas e indiretas):

  • Baudrillard, J. Simulacros e Simulação. (Discussão sobre hiper-realidade e confusão entre representação e realidade)​.
  • Bourdieu, P. O Poder Simbólico. (Conceito de poder simbólico e legitimidade reconhecida)​.
  • Han, B.-C. No Enxame: Perspectivas do Digital. (Caracterização do “enxame digital” e sua falta de coesão e energia política)​.
  • Barroso, L. R. Declaração no V Colóquio sobre o STF (2018). Agência Brasil (Enfatiza independência judicial face ao clamor popular)​.
  • Celso de Mello, Voto na AP 470 (2013). Supremo Tribunal Federal (Alerta contra contaminação de julgamentos por pressões externas)​.
  • Caso Elon Musk vs. STF: Brasil de Fato – “Twitter suspenso? Entenda a decisão de Moraes…” (2024)​.
  • Caso Trump/Rumble vs. STF: Brasil de Fato – “Alexandre de Moraes repudia tentativa dos EUA…” (2025)​; CartaCapital/Agência Brasil – “Barroso: narrativa de golpe não prevalecerá” (2025)​.
  • Estudos sobre ativismo digital e slacktivism: Kristofferson, K. et al. (2014). Journal of Business Ethics (ações simbólicas de baixo custo tendem a impactar pouco a mudança real)​.
  • Dados e análises adicionais em: TRF4 – Revista da Escola da Magistratura (Luciana Bauer, 2021); Revista Direito Internacional e Globalização Econômica (Erica Aoki, 2023); Relatórios do Congresso Nacional (CPI das Fake News, 2019-2020); Jurisprudência do STF (Informativos).

Eduardo Fernando Appio é um escritor e juiz federal brasileiro, ex-titular da 13.ª Vara Federal de Curitiba, havia sido designado para atuar nos processos da Operação Lava Jato. Atualmente, Appio está como Juiz da 18ª Vara Previdenciária da Justiça Federal do Paraná

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Last Update: 01/03/2025