‘A Inflação Brasileira’, de Ignácio Rangel, 60 anos depois¹
por Nilmar Rippel, Bruno Saggiorato e Marlon Clovis Medeiros
Se a inflação brasileira dos últimos anos desafia explicações superficiais, uma obra publicada há mais de 60 anos pode ajudar a compreendê-la sob nova luz. Em A Inflação Brasileira (1963), o economista Ignácio Rangel defendia que a inflação não é uma causa em si, mas um sintoma de distorções profundas na estrutura econômica.
Rangel, que atuou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e foi assessor do governo Vargas, propôs uma leitura inovadora para seu tempo — e ainda provocadora para os dias de hoje. Em vez de culpar simplesmente a emissão de moeda ou gargalos produtivos, ele via a inflação como um fenômeno dialético, relacionado à estrutura social e econômica do país: concentração de renda, rigidez da estrutura agrária, poder de corporações oligopolistas e oligopsônicas a própria lógica do processo de industrialização.
Um debate que atravessa décadas
Nos anos 1950 e 60, o debate era intenso entre monetaristas, que apontavam a expansão da base monetária como causa da inflação, e estruturalistas, que falavam em gargalos de oferta. Rangel, porém, criticava ambos. Para ele, tratava-se de “ilusões analíticas”: a inflação, dizia, não nascia do excesso de moeda nem apenas de problemas de oferta. Era consequência de desequilíbrios mais profundos, como a concentração de poder econômico e a manipulação de preços por grandes grupos empresariais.
Rangel também argumentava que o Estado tinha papel decisivo no enfrentamento do problema. A solução não estaria em medidas recessivas — como o aumento da taxa de juros —, mas em políticas de crescimento e reorganização produtiva. Investimentos públicos bem coordenados, dizia ele, poderiam restaurar o equilíbrio e destravar o desenvolvimento.
De ontem para hoje: o que mudou e o que permaneceu
Entre 2013 e 2023, o Brasil enfrentou dois períodos críticos. O primeiro, entre 2013 e 2019, foi marcado por instabilidade política, recessão econômica, a Operação Lava Jato e o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. O segundo, entre 2020 e 2023, envolveu a pandemia de Covid-19, os impactos da guerra na Ucrânia e a inoperância e entreguismo do governo Jair Bolsonaro. Nesse intervalo, a inflação voltou a ganhar destaque, mas com características próprias em relação ao passado. Ademais, ela não foi causada por excesso de demanda, como sustentam economistas ortodoxos. Foi puxada por choques de oferta globais, pela concentração de renda e pelo controle de preços por grandes corporações — elementos que ecoam as análises de Rangel.
Além disso, a política de juros altos, amplamente utilizada como remédio contra a inflação, mostrou-se ineficaz. Entre 2013 e 2015, por exemplo, o aumento da taxa Selic não impediu a elevação dos preços. Isso revela a limitação de se tratar a inflação apenas como um fenômeno monetário, ignorando suas raízes estruturais.
O impacto da financeirização
Uma das principais transformações desde os tempos de Rangel foi a financeirização da economia. O capital passou a buscar retorno não mais na produção, mas nos mercados financeiros. Isso mudou a própria dinâmica inflacionária. Enquanto na época de Rangel a inflação podia atuar como mecanismo de defesa da produção — forçando consumo e evitando paralisias —, hoje ela é cada vez mais dissociada da atividade produtiva.
Essa financeirização também contribui para a desindustrialização do país, para a manutenção de uma estrutura econômica dependente e para o desestímulo ao investimento produtivo. E, mais uma vez, a obra de Rangel oferece ferramentas para entender o que está por trás desses processos.
Inflação como sintoma, não como doença
Ao fim da releitura, as ideias centrais de Rangel mantêm notável atualidade. A inflação segue sendo sintoma — e não causa — de distorções estruturais. Persistem também fatores como a alta taxa de exploração do trabalho, a concentração de renda e o poder de grandes corporações na formação de preços. Em setores estratégicos, como o de alimentos, essas empresas não apenas administram, mas determinam os preços.
O que mudou de forma marcante foi o papel da inflação no sistema econômico. Se antes ela cumpria uma função de proteção da produção, agora, em um sistema dominado pela lógica financeira, ela representa apenas instabilidade. E as políticas centradas apenas em juros são insuficientes — e, muitas vezes, contraproducentes.
Diante desse quadro, qual a alternativa?
Uma estratégia nacional de desenvolvimento que combine planejamento, investimento público e políticas estruturais. Uma receita relativamente antiga, mas que talvez ainda seja a melhor resposta para um problema tão atual.
Nilmar Rippel – Doutorando em Geografia Econômica
Bruno Saggiorato – Doutorando em Geografia Econômica
Marlon Clovis Medeiros – Doutor e Professor de Geografia Econômica
Notas:
1- Síntese do artigo “Os Sessenta Anos de ‘Inflação Brasileira’ de Ignácio Rangel: entre mudanças e permanências”, originalmente publicado na Revista Geoingá. A versão completa do texto pode ser encontrada através do link: <https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Geoinga/article/view/72712>
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