Começou o espetáculo do julgamento da assim chamada tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. Qualquer semelhança com a Operação Lava Jato e a condenação de Lula em segunda instância – antes do trânsito em julgado – não será mera coincidência. Muda-se apenas o condenado, que em praça pública recebe os apupos da turba indignada, enquanto desce sobre ele a mão pesada do Estado burguês, com seus estratagemas de ocasião. Na época de Lula, a imprensa se deleitava com a tese da condenação em segunda instância, que permitia ao Estado punir o crime antes da sentença; agora ouvimos de Gonet, entre outras explicações, a tese do golpe de Estado parcialmente consumado, aprovada de pronto até mesmo pelos “juristas progressistas”. A esquerda comemora como se a festa fosse, de fato, sua, mas tudo indica que a ressaca vá ser amarga.
A edição da última terça-feira da Folha de S. Paulo ilustrou sua página de editoriais com uma charge em que o desenhista trabalhou sobre a imagem da estátua da Justiça na representação de Alfredo Ceschiatti, a que está em frente ao STF. O escultor fez descansar a espada da Justiça no colo da figura feminina, que aparece vendada, mas sem a tradicional balança que costuma representar o equilíbrio. O chargista fez da espada o suporte para um saco de pipocas e um copo de refrigerante – e no alto da imagem escreveu a frase: “É hoje”. Parece haver algo errado quando a imprensa da burguesia e a esquerda dividem o mesmo saco de pipocas.
O clima de torcida que anima uns e outros é a prova de que o julgamento de Bolsonaro não passa de um espetáculo para divertir os adversários. Podia ser um jogo da Copa do Mundo, uma comédia despretensiosa, o último capítulo da novela das nove, mas é a apresentação da performance de juízes em um jogo de cartas marcadas e placar conhecido de antemão. Um dia Lula foi queimado na fogueira e alvejado de impropérios por uma multidão ávida de castigar os corruptos; agora é Bolsonaro quem queima na pira de Alexandre de Moraes sob o aplauso dos defensores da democracia, sedentos de punir o “golpista”. É bom lembrar que a ira popular, incitada diuturnamente pelo pseudomoralismo lava-jatista da imprensa burguesa, contribuiu muito para o florescimento do hoje chamado “bolsonarismo”.
A cruzada moral da esquerda, que a transforma em versão espelhada de seu inimigo de urna, descaracteriza cada vez mais os seus princípios, abandonados em troca de um identitarismo vingativo, “cancelador”, moralista, punitivista, direitista – tudo em nome de um suposto projeto eleitoral, aliás de baixíssima ambição. Totalmente desfocada, essa esquerda eleitoral defende o STF e faz de Alexandre de Moraes seu herói. Não faltam comentaristas e “juristas” de ocasião para defender as arbitrariedades cometidas no âmbito da nova farsa judicial-midiática. Todos querem dar a sua contribuição – ou, à maneira dos julgamentos da Santa Inquisição, atirar sua pedra no condenado.
Uns torcem por mais de 40 anos de pena em regime fechado (para um homem que tem 70 anos de idade), o que, contas feitas, noves fora os agravantes, seria possível caso ele recebesse pena máxima em todos os supostos crimes; outros pedem que perca sua patente no Exército e, consequentemente, o direito a uma cela em quartel (há os que exigem vê-lo no presídio da Papuda); outros ainda querem que perca aposentadoria. E por aí vai. Nada parece ser o bastante. Há também os que acham que Bolsonaro deveria ser condenado por mais crimes: por não ter tomado vacina e por ser responsável pela morte de 700 mil pessoas vítimas de Covid-19 na pandemia, por exemplo. Proliferam as matérias na imprensa com especulações sobre meios de aumentar ainda mais a pena do ex-presidente, cuja condenação já está dada de antemão.
A histeria é bem representada pela voz do deputado petista Lindbergh Farias, que, mais realista que o rei Alexandre, foi quem pediu a vigilância dentro da casa de Bolsonaro às vésperas do início do julgamento, pois ele teria ouvido dizer que haveria em marcha um plano de fuga. Moraes, é claro, achou oportuno botar os agentes no condomínio, além de um drone na área comum, e mandar revistar o porta-malas de cada automóvel que sai de lá. Além disso, há monitoramento por câmeras no local e o acusado, embora preso, continua usando tornozeleira eletrônica. A sanha é tanta que, às vezes, parece que, se o rei do STF determinasse a pena de morte para esse réu em nome do sacrossanto Estado Democrático de Direito, os juristas de ocasião encontrariam justificativa na tão citada e pouco lida Constituição de 1988.
Pior ainda que esse espetáculo bizarro, cujo intuito é abrir caminho para a eleição de um candidato da burguesia (desviando do ora réu os votos que não consegue conquistar na luta política), é a mensagem dada ao povo com as absurdas condenações dos manifestantes do 8 de janeiro. Penas artificialmente estendidas por sobreposição de crimes e por imputação fantasiosa de delito de tentativa de golpe de Estado têm um único propósito: aterrorizar a população, dissuadindo-a de seu legítimo direito de contestar a ordem vigente. Segundo o ministro Luís Roberto “Mané” Barroso, é preciso acabar com o “extremismo”. Cassar canais de internet, criminalizar pessoas por opiniões, tudo isso parece muito divertido enquanto o pau que bate em Chico só está batendo em Chico.
O STF está tão bem amparado na lei que se cercou de todas as salvaguardas para se proteger do povo. A Praça do Três Poderes foi interditada, cercada de grades, com efetivo policial reforçado, inclusive com uso de cães farejadores e drones com câmeras térmicas. Para as comemorações de 7 de setembro, mais medidas de segurança – afinal, é preciso proteger do povo (os 213 milhões de pequenos ditadores, conforme declarou a ministra Cármen Lúcia, do STF) as autoridades, os prédios públicos e, quiçá, a estátua da Justiça, que pode ser ameaçada com algum batom vermelho. Pode ser que isso seja democracia, mas é uma democracia sem povo, titubeante e envergonhada.
Segundo Paulo Gonet, o procurador-geral da República, nosso velho conhecido da Operação Lava Jato, o fato de os manifestantes do 8 de janeiro carregarem cartazes em que pediam a volta do regime militar, bem como seus “gritos e urros”, seria uma prova de seu intuito golpista – e o quebra-quebra deve ser o que chamou de “consumação parcial do golpe”. Esses mesmos cartazes, além dos gritos e urros, já estavam presentes nas manifestações de junho de 2013, que a imprensa burguesa descrevia como “a voz rouca das ruas” contra o governo do PT. Ainda assim, Dilma Rousseff foi reeleita no ano seguinte pelo povo – e, logo depois, deposta “com STF, com tudo”.
Nos cálculos da burguesia, basta tirar Bolsonaro do caminho e botar o máximo possível de bolsonaristas na cadeia para que a paz volte a reinar nas disputas nos moldes PT vs. PSDB. Por essas e por outras, é enorme o seu empenho em cercear as redes sociais, onde a informação circula sem a mediação da imprensa do capital. O sonho da burguesia é fazer a roda do tempo girar para trás, mas nada indica que isso seja possível. O mais provável é que a prisão de Bolsonaro vá tornar o cenário ainda mais complexo. O jornalista Leonardo Attuch mencionou em programa do 247 que, segundo suas fontes, o candidato do STF nas próximas eleições é Tarcísio de Freitas. Nenhuma novidade. Para a esquerda, restará a inevitável rebordosa.