A ilusão de que ser homem bastaria

por Ana Laura Prates

quem sabe o Super-homem venha nos restituir a glória
mudando como um deus o curso da história
por causa da mulher

O encontro com a verdade, quando temos coragem de tirar o véu que nos protegia, é de uma dor indescritível, quase insuportável, e um caminho sem retorno. Essa foi uma fala de Evandro Fioti se referindo ao racismo, mas que me tocou profundamente quando ouvi, pois expressa exatamente o que venho experimentando nos últimos anos quanto ao machismo. E olha que minha posição nunca foi completamente alienada em relação ao assunto. Além dos privilégios de classe e da branquitude (sim, sou fruto da política de branqueamento que esteve em vigor em nosso país – mas esse é assunto para outro texto), fui criada por uma mãe desquitada, independente, leitora de Beauvoir que, entretanto, reproduziu em vários aspectos da minha educação valores conservadores, supostamente para me proteger. Essa biografia, entretanto, bem como relações com homens aparentemente pouco convencionais, me faziam crer – de modo ingênuo e soberbo – que eu estaria a salvo. Sim, eu também era uma mulher cooptada pelo machismo e vivia a ilusão de que ser homem bastaria. Será possível deixar de sê-lo? Não sei. Mas, hoje, pelo menos, o véu caiu e por mais difícil que seja, concordo com Fioti: quando encontramos uma verdade, é melhor encará-la de frente.

As coisas começaram a mudar quando minha filha se tornou adolescente e eu, para protegê-la (lembra da minha mãe?) entrei no famoso dilema no shortinho… Brincadeiras à parte, Luiza me trazia as questões que vinha discutindo no coletivo feminista no Colégio Equipe – uma escola pouco convencional da Zona Oeste de São Paulo –, e elas me desconcertavam. Esses debates e até embates foram cruciais, inclusive, para uma mudança radical na relação mãe-filha, da qual muito me orgulho. Deixo aqui meu agradecimento público aos ensinamentos da então menina de 14 anos, que com certeza mudaram o rumo da minha vida. Eu tinha que reconhecer: mesmo sendo também eu uma mulher independente, informada, estudiosa da feminilidade, e ainda por cima analisada, o machismo me atravessava de forma atroz em todas as esferas da minha vida, e eu não enxergava, ou não queria enxergar. Porque dói. E exige posições e decisões que cobram um preço muito alto.

Uma das partes mais difíceis desse processo – e isso é também uma constatação clínica – é poder se reconhecer como vítima, coisa bem diferente de se vitimizar. Embora o machismo seja estrutural, ele se materializa concretamente em sujeitos encarnados, em corpos que amamos e em homens com quem nos relacionamos: nossos colegas, amigos, parentes, companheiros e amantes. Essa concentração de amor, amizade, desejo, mágoa, medo e desconfiança, em um mesmo objeto é uma das consequências mais nefastas do machismo na subjetividade de mulheres heterossexuais. Quantas vezes as mulheres não tentam “salvar” para elas mesmas seus “abusadores involuntários” de estimação, apoiadas em um narcisismo que as impede de reconhecer que vinham sendo (às vezes por anos) manipuladas, enganadas, desrespeitadas etc.? E quantas mulheres se submetem a essas situações para não renunciarem a seus casamentos “estáveis” e “confortáveis” ou a seus cargos, empregos e status?

O assunto é urgente, e tem retornado e insistido, seja em meu consultório ou na minha vida privada e pública. Mesmo mulheres privilegiadas, de classe média, progressistas, feministas e que em geral se relacionam com homens escolarizados, ditos de esquerda, com amplo acesso à cultura e informação não estão imunes ao machismo, à misoginia e suas manifestações, principalmente, a violência trivializada e até normalizada por muitos: a brotheragem e seus dispositivos já mencionados: as conversas de bar sobre mulheres, quase sempre quando já estão embriagados (o que, em geral, é usado como álibi), os grupos de whatsapp, os vestiários etc. Evidentemente o problema não está nos lugares ou meios em si mesmos, mas na finalidade desviada de trocas que poderiam sim servir para comunicação, solidariedade, apoio, acolhimento ou pura distração e diversão

Aliás, não apenas a escolaridade, ou posição política, mas tampouco a profissão dos homens  garante outro posicionamento: são médicos, engenheiros, técnicos, artistas, escritores, arquitetos, empresários, estudantes, publicitários, professores, advogados, psicanalistas… E há, também, a tenebrosa constatação da cooptação de algumas mulheres, presas e manipuladas pelo discurso hegemônico, que assim como os “pobres de direita”, se tornam reprodutoras de práticas, falas e atos machistas para serem aceitas e bem quistas por homens, seja no amor, no trabalho, na imagem ou nas relações de poder. Soube, por exemplo, de mulheres que difamaram uma colega de trabalho em pleno 2024, por supostamente se relacionar com um homem mais jovem.

Em maio de 2024, entrevistei em meu programa Ouvindo Vozes a professora da UNB e pesquisadora Valeska Zanello, que tem se dedicado à articulação entre saúde mental e gênero. Chamamos o episódio de “A crise da masculinidade” e, nele, Valeska falou sobre sua pesquisa com grupos masculinos de whatsapp. Vale a pena escutar o episódio no Spotify ou no Youtube da TVGGN, mas adianto aqui a ênfase no pacto que protege os homens e se transforma em um dos mais eficazes dispositivos de perpetuação das micro violências cotidianas que confirmam os dois únicos lugares aceitos para as mulheres no Patriarcado capitalista: mãe ou objeto sexual – nunca um sujeito com desejos, aspirações ou fantasias próprias. O que foi chamado por Marilyn Frye de laço homoafetivo seria muito bem-vindo, como o é, aliás, qualquer outro laço verdadeiro de amor ou amizade. Usar esse termo para definir a argamassa da “brotheragem”, entretanto, me parece injusto com homens que realmente amam outros homens. Pois, especificamente entre homens heterossexuais, caberia interrogar se o que sustenta essas relações é realmente o afeto amoroso e a solidariedade – que podem eventualmente estarem presentes –, ou se são muito mais relações de submissão, domínio, poder e controle mútuo, que afetam diretamente as mulheres, mas também os homens que, ainda hoje, têm dificuldade em quebrar esse pacto de supostos “irmãos”.  

Em novembro de 2024, também no Ouvindo Vozes, entrevistei a psicanalista, socióloga e documentarista Ingrid Gerolimich, que falou longamente sobre esse modo peculiar de união masculina, que faz com que querer agradar, não contrariar e não decepcionar outros homens seja mais importante do que manter a coerência com princípios éticos e políticos e mesmo a lealdade, amizade e amor pelas mulheres com quem eles se relacionam. Enquanto isso, as mulheres são ensinadas a competirem entre si para agradarem os homens e serem escolhidas na “prateleira do amor” (a expressão é de Zanello). Daí, inclusive, a ênfase que Ingrid atribui à amizade entre mulheres como uma contra tecnologia de gênero. Valeska aposta também no letramento de gênero para homens, sobretudo os mais jovens, e é com muita esperança na possibilidade de mudança que me somo a essas e tantas mulheres – e alguns homens, felizmente – que vêm tentando mudar esse estado lamentável das coisas.

Esses dias têm sido particularmente difíceis para quem decidiu olhar de frente para essas questões: passei o final de semana às voltas com tristeza, nojo, raiva e indignação e tendo que lidar bem de perto com o mal-estar provocado pelos efeitos nocivos e desgastantes da brotheragem doentia. Por uma enorme coincidência – ou talvez porque episódios como esse sejam mais comuns do que gostaríamos de acreditar, ou talvez porque finalmente o assusto esteja sendo tratado com a devida importância –, recebo na segunda-feira, de minha filha, o link para escutar o episódio “A anatomia de uma mentira”, por Vanessa Barbara, do Podcast “CPF na nota?” da Radio Novelo. Vanessa revela uma lista de transmissão de e-mails – da qual participavam jornalistas, editores e escritores, incluindo seu então marido –, descoberta durante sua separação, há 14 anos. Nessa lista, esses homens progressistas e atualmente renomados expunham seus casos, companheiras, esposas e amantes de modo misógino e machista. O caso vem repercutindo no meio literário e nas redes sociais durante toda a semana, se desdobrando em debates que já deveriam estar na mesa há muito tempo. Alguns dos homens identificados e envolvidos já vieram a público atestar a veracidade das declarações de Vanessa e se desculparam.

Elaborando os acontecimentos do fim de semana, e escutando a dor de Vanessa da segunda, voltei ao episódio 4, “Amigo secreto”, do Podcast de Fernanda Lima, Zen Vergonha, o qual recomendo fortemente. Neste episódio vários homens relatam seus testemunhos a respeito de como se sentem em relação a esses grupos de “brothers” e como conseguiram se posicionar de modo a romperem com o ciclo de misoginia, violência, submissão e aprisionamento a algo que não mais os representa e com o que não se identificam. São homens nossos aliados, que têm percebido o quanto essa mudança de posição em relação às mulheres e a eles próprios é boa para todos nós, e para a sociedade mais justa e menos desigual que desejamos construir. Minha mensagem no Instagram, no final de 2024, foi especialmente dedicada a alguns homens que tiveram um papel crucial na minha vida durante o ano e reforço aqui meu agradecimento a cada um. Homens, homens verdadeiramente amigos, companheiros, parceiros, que com respeito e afeto demonstram diariamente que vale a pena – como diria Gil – mudar o curso da história por causa da mulher!

Ana Laura Prates é dona de casa e mãe, psicanalista, escritora e editora. É autora, dentre outros de “Feminilidade e experiência psicanalítica” e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (Larvatus Prodeo Editora). Doutora pela USP, Pós-Doutora pela UERJ e Pesquisadora da UNICAMP. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD)

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Last Update: 24/01/2025