A ideologia do desenvolvimento como justificativa autofágica do capital

por Sandro Luiz Bazzanella, Cintia Neves Godoi e Jairo Marchesan

O desenvolvimento é uma ideologia que se apresenta derivada de cosmovisão histórica, política e social que se manifesta na Europa a partir do período denominado de modernidade. Resulta de desafios práticos vinculados ao crescimento demográfico, à retomada da importância das cidades, às necessidades de consumo de produtos e mercadorias produzidos pela Revolução Industrial,  das populações, sobretudo urbanas, ao aumento da produção agrícola e do comércio de média e longa distância, entre outros fatores.

Estes desafios requerem planejamento da produção, da distribuição de mercadorias, da geração e distribuição de renda e, sobretudo de garantias de propriedade de bens materiais e imateriais, bem como do capital acumulado. A partir de tais demandas nasceu uma das primeiras ciências humanas – a Economia-política. É uma ciência que desde suas origens se assemelha a um “ornitorrinco”, animal que se apresenta como uma espécie de híbrido com características de ave, de peixe, de réptil e até de roedor.

 A Economia-política se constitui com pretensões advindas da física (Ciência natural) mecânica e, portanto, quer afirmar as leis universais e invariáveis da economia, mesmo que esta seja decorrente da ação humana e de sua relação com a natureza. É uma ciência que tem também pretensões morais no sentido de compreender as determinações comportamentais humanas, os mecanismos que incidem sobre a vontade, as escolhas e a liberdade humana. 

Considerando estas duas variáveis constitutivas, a Economia-política moderna se apresenta como uma ciência que arroga a si construção de discursos “científicos” de mensuração da riqueza socialmente produzida, tal como, o Produto Interno Bruto (PIB), da capacidade de produção sob determinadas condições de demandas de consumo, de investimentos, da interferência de possíveis intempéries climáticas na produção e distribuição de produtos e mercadorias. Ainda nesta direção, pretende calcular o comportamento dos indivíduos no que se refere à produção, ao consumo, às suas expectativas de renda e, de ascensão social. Além disso, a economia-política passou a estabelecer previsibilidades políticas e econômicas locais, regionais, nacionais e mundiais como expressão da verdade sobre o progresso e/ou o desenvolvimento de povos e países.

A ideologia do desenvolvimento também é uma cosmovisão resultante dos ideais do iluminismo que se manifestou em alguns povos da Europa Ocidental, a partir do século XVIII aos nossos dias.

O iluminismo se caracterizou pela aposta da razão como caminho por excelência para a emancipação humana em relação a visões de mundo tipificadas como obscurantistas, baseadas em crenças, em superstições, ou mesmo na condição civilizatória primitivista dos povos indígenas do novo mundo, cujas terras haviam sido invadidas por exploradores e saqueadores das riquezas naturais pelos europeus.

Argumento similar, tão brutal quanto ou mais, foi imputado aos povos africanos  submetidos neste mesmo contexto à condição secular e desumana da escravidão nas colônias de exploração sob jugo de países europeus. 

A herança iluminista se manifestou, portanto na afirmação de uma cosmovisão alicerçada na concepção de modernidade, progresso, posteriormente de desenvolvimento, que reside sobremaneira no investimento de uma razão instrumental técnico-científica cujo contínuo poderia levar as sociedades humanas ao ininterrupto e ilimitado “progresso” humano e social. 

O iluminismo pretendeu afirmar uma lei histórica universal e invariável, uma filosofia da história que se assentou no continuum progresso humano, científico e tecnológico. Ou seja, não haveria limites para a capacidade humana de progredir diante uma natureza farta em recursos.

O progresso (moderno) e o desenvolvimento (seu homônimo contemporâneo) apresentam-se como marchas científicas e tecnológicas irrefreáveis. O alcance do pleno desenvolvimento é apenas uma questão de superação de concepções retrógradas, românticas, preconceituosas vigentes em grupos e sociedades humanas pouco instruídas, capturadas por discursos religiosos, ou mesmo por narrativas de políticos revolucionários e, como tal contrapostos à ordem natural do desenvolvimento humano e social.

 Diante do exposto, é preciso ainda considerar que a ideologia do desenvolvimento como cosmovisão é também um produto discursivo inerente à constituição e afirmação do capitalismo como modo de produção, ou seja, como um modo de organizar a vida material, produtivae psíquica de indivíduos e populações de acesso aos bens materiais e imateriais necessários à sobrevivência das sociedades ocidentais auto denominadas “civilizadas” e, todo o preconceito em relação a outros povos e culturas que tal condição gerou e continua promovendo na atualidade.

Observe-se novamente que o capitalismo é fenômeno histórico, social e político que se constitui em determinadas sociedades europeias a partir dos séculos XIV, e XV à atualidade. Concomitantemente, povos indígenas, africanos, asiáticos garantiam as condições materiais e imateriais de suas existências sociais e individuais, a partir de outras formas de relação de produção e distribuição dos bens materiais e imateriais necessários à sua subsistência.

Ao longo dos séculos, XVIII aos dias de hoje estes povos foram sistematicamente assediados, agredidos, violentados, escravizados pelas práticas ocidentais capitalistas, a ponto do capitalismo ter se tornado o modo de produção hegemônico mundialmente.

Ainda nesta direção, o capitalismo como modo de produção está vinculado a um modo de organizar a vida individual e social, articulado na plena produção e no pleno consumo com vistas a obtenção de lucro, que necessariamente alimenta o regime de acumulação do capital, condição irrenunciável de contínuo investimento no capital como garantia de sua lógica de reprodução. Ou seja, o capitalismo é voraz, faminto, insaciável em sua dinâmica de submeter a natureza e os seres humanos ao contínuo da produção e do consumo. Sua existência e reprodução dependem de sua compulsão destrutiva de tudo aquilo que nomeia como recursos naturais para produção, bem como das mercadorias por ele produzidas que precisam ser intensamente e imediatamente consumidas, descartadas para que se garanta sua perpetuação.

Do ponto de vista psicanalítico (Freud/Lacan) o capitalismo é um modo de produção marcado pela compulsão de destruição, de morte. Sob esta lógica, a ideologia do desenvolvimento, advinda da ideologia do progresso acima analisada, funde-se integralmente com o capitalismo e sua condição compulsiva assentada no fetiche da mercadoria.

Tudo, literalmente, tem que se transformar em mercadoria assentado no transitório valor de troca, do consumismo imediato e descartável de produtos, suplantando o valor de uso que necessariamente requer outras formas de relação dos seres humanos consigo mesmos, com a natureza, com a vida, com as coisas e com os objetos produzidos e, que passam a fazer parte do mundo humano.

O modus operandi (cosmovisão) do capitalismo requer a potencialização do fetiche da mercadoria que incentiva, sugere e requer que os indivíduos de qualquer classe e segundo suas condições financeiras satisfaçam “seus” desejos e necessidades de consumo, de tal forma que o sistema de concentração de capital se reproduza ininterruptamente, a partir de cada indivíduo independentemente de sua posição na hierarquia social.

Porém, no capitalismo, nem todos os indivíduos e sociedades terão acesso às mesmas mercadorias, na medida em que o “sistema de produção e reprodução do capital” estabelece uma divisão mundial, nacional, regional e local de produção e consumo. Ou seja, não há qualquer liberdade de escolha produtiva ou de consumo no capitalismo. As decisões sobre o que produzir, quando produzir, como produzir e, quem produzirá, bem como o que consumir, quando e como consumir e descartar as mercadorias são decisões que pertencem a complexas relações de poder que perpassam indivíduos, sociedades, instituições políticas e estatais, bem como corporações que em seu conjunto conformam as condições necessárias e de garantia da lógica de reprodução do capital, do capitalismo. 

A lógica do capital (capitalismo) se justifica e procura se legitimar no contexto das relações de indivíduos e sociedades mundo afora por meio da reprodução da necessidade, senão do dever de povos e países acessar o “desenvolvimento”.

A falácia do capitalismo reside no fato incontestável, porque inerente à lógica do capital se apresenta no fato de que é impossível e, mesmo, não desejável que “todos” os países, povos e indivíduos tenham acesso quantitativo e qualitativo ao mundo fascinante das mercadorias comumente associadas à ideia de melhoria da qualidade de vida de indivíduos e sociedades.

Sob tais pressupostos, insistir na lógica do desenvolvimento sob a égide do regime de acumulação do capital é condição de garantia do suicídio humano e planetário. Efetivamente não há natureza e vida suficientes para abastecer bilhões de seres humanos, dentro da lógica da desigualdade do capitalismo. As condições de produção e consumo promovidas pelo capitalismo e sua ideologia do desenvolvimento nos dois últimos séculos à atualidade lançaram o planeta na condição de emergência climática, de miséria de parte significativa da população mundial, de promoção de guerras genocidas e sofrimentos humanos, físico e psíquico. O preço a ser pago pela adesão acrítica a ideologia do desenvolvimento são montanhas de lixo, a poluição dos rios, dos mares, dos vales. É a devastação da flora, a redução da fauna, o adoecimento e inanição incontornável da vida.

A lógica do capitalismo em sua demanda de reprodução e acumulação do capital é inexorável. Não há diferenças substanciais entre capitalismo humanizado dos países desenvolvidos, capitalismo selvagem imposto sobre povos periféricos, ou em outras denominações como capitalismo de Estado. Capitalismo será sempre capitalismo pois seu fundamento reside na acumulação do capital advindo da exploração, da expropriação da vida, na destruição dos bens naturais, do mundo, da condição humana. Ideologia do desenvolvimento, dentro deste modo de organização político e econômico, será sempre ideologia do desenvolvimento como estratégia de justificação operacional do modo de produção capitalista assentado no fetiche da mercadoria.

 Necessariamente interesses estratégicos do capitalismo desenvolvido exerceram relações de domínio sobre outros povos e países como estratégia de garantia de seu regime de acumulação de capital.  Ainda nesta direção, decorrente das esferas decisórias do capitalismo em suas diversas variações locais e regionais, mas coordenadas em âmbito global é preciso considerar que nem todos os indivíduos terão acesso aos mesmos bens impostos por questões de restrições salariais, tecnológicas, educacionais e até culturais e religiosas.

Ou seja, a ideologia do desenvolvimento sob as bases do capitalismo privilegia determinados grupos e sociedades, em detrimento de outros grupos humanos e sociedades. Diante de tais contradições inerentes ao capitalismo e seu regime de acumulação de capital e, no contexto de sociedades globais a ideologia do desenvolvimento exerce um papel fundamental mantendo o horizonte de esperança de povos, países e indivíduos de alcançarem o desenvolvimento custe o que custar. E de fato o preço pago está comprometendo a continuidade da vida na terra. Enquanto o fetiche da ideologia do desenvolvimento se mantiver como utopia individual e social, o regime de acumulação de capital prossegue produzindo, consumindo, concentrando o capital, destruindo o meio ambiente e, por decorrência, ameaçando de morte a vida neste planeta.

É importante neste momento do debate considerar que diante da voracidade da lógica de reprodução do capital justificada socialmente e mundialmente sob as quimeras da ideologia do desenvolvimento, não se trata como poderia pensar ingenuamente alguns de propor correções ao capitalismo, defendendo a ideologia do desenvolvimento sob rótulos como desenvolvimento humano, social, sustentável. Ou ainda de assumir como verdades inquestionáveis para a humanização do capitalismo proposições como as da ONU, apresentada aos povos e países como uma agenda possível, com seus “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).” Ainda nesta direção, não se trata de apostar nos discursos que anunciam a necessidade de contrapor ao desenvolvimento o discurso do decrescimento. Estas propostas e suas justificativas discursivas parecem se apresentar carregadas de interesses geopolíticos, geoestratégicos vinculados à manutenção dos padrões de produção, de consumo e acumulação de capital dos países desenvolvidos, transferindo aos países periféricos do mundo o ônus da preservação dos recursos naturais, da preservação ambiental mantendo seus povos em condições intensas de exploração e expropriação de sua mão-de-obra, de cerceamento de seus direitos fundamentais, de negação de afirmação de justiça social, bem como em situação permanente de pobreza e miséria.

Diante destas condições humanas e sociais em escala local, regional, nacional e global em curso na atualidade, o que está em jogo na atual quadra histórica, política e social é compreender suficientemente as fraturas, as contradições e os paradoxos que constituem a modernidade e o capitalismo como modo de produção, de organização social e política.

Trata-se de esforços de compreensão do ímpeto destrutivo, agressivo do capitalismo e de suas justificativas de produção e reprodução a partir da ideologia do desenvolvimento. Mas, noutra perspectiva de análise, sobretudo considerar que o capitalismo como modo de produção e organização social não é um determinismo, ele se apresenta após milhares de anos de existência e convivência do ser humano neste planeta e, como fato histórico, que necessariamente será superado em função de suas condições estruturais insustentáveis em relação a vida em sua totalidade.

Assim, é urgente considerar que está em curso uma profunda crise política, econômica, humana e  ambiental deste modelo de produção e organização social. Tal condição societária pode durar séculos, como todo e qualquer fenômeno histórico desta natureza.

Neste contexto, refletir, pesquisar e compreender profundamente as variações da ideologia do desenvolvimento é urgente, sobretudo para nos colocarmos diante de questões inadiáveis, entre elas: O que faz com que a ideologia do desenvolvimento ainda se mantenha como narrativa norteadora das concepções de mundo e de vida na atualidade? Há possibilidades no contexto de mundo globalizado economicamente articular estratégias e experiências de superação da ideologia do desenvolvimento? Quais os pressupostos teóricos e práticos necessitam ser reposicionados para a constituição de uma concepção de economia que promova a vida em sua totalidade de formas? De que formas a sociedade brasileira pode superar o ethos escravocrata inerente ao modus operandi de seu capitalismo oligárquico e selvagem para conferir justiça social à condição diversa de sua população historicamente aviltada, explorada e expropriada? Como superar os discursos da ideologia do desenvolvimento que ao longo do século XX se apresentou à sociedade brasileira como promessa não realizada, senão reiteradamente frustrada? Quais concepções de mundo, de vida, de relações necessitam ser reposicionadas no debate social para avançar na compreensão de que é urgente paralisar a máquina capitalista do desenvolvimento? 

A crise da ideologia do desenvolvimento no contexto do capitalismo especulativo, financeiro global em curso demonstra de forma inequívoca que o modelo norte americano/europeu apresenta-se cada vez mais insustentável para dar conta dos nossos desafios societários globais.

O modelo chinês é uma promessa com interessantes variáveis e que se encontra em ascensão. Mas, aqui novamente cabe o questionamento: será o modelo chinês de desenvolvimento suficiente para dar conta das mazelas sociais e políticas vitais em curso na atual quadra histórica?

A ideologia do desenvolvimento chinês parece apresentar-se diferente em relação ao modelo ocidental hegemônico, mas, quais são seus limites e potencialidades quando confrontados com nossa urgência por justiça social em uma sociedade singular como a brasileira?

Estamos diante de uma crise dos grandes modelos e receituários próprios da ideologia do desenvolvimento constituídos na modernidade ao que a multipolaridade se contrapõe, exigindo que cada país se posicione em relação às suas demandas societárias. Porém, a experiência humana e social em sua cotidianidade ao longo da trajetória  sobre a face da mãe terra sabiamente ensina que quando estamos perdidos a melhor decisão é paralisar a caminhada, rever a trajetória percorrida, procurar reconhecer aspectos da topografia, da vegetação e, quem sabe a partir daí reposicionar a melhor rota possível para o bom termo da caminhada. 

Assim, urge paralisar a máquina do desenvolvimento para pensar outras formas de cuidado e promoção da vida em sua diversidade e totalidade de formas. Ou dito de outra forma, é preciso urgentemente paralisar a máquina autofágica do capital e de sua ideologia justificadora o desenvolvimento, para permitir que se repense possibilidades de novas formas de viver neste frágil planeta.

Dr. Jairo Marchesan. Geógrafo e Professor.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella. Filósofo e Professor.

Drª. Cíntia Neves Godoi – Geógrafa e Professora

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Last Update: 22/07/2025