A IA não está nos deixando burros: o Capitalismo, sim

por Isabela Rocha

Recentemente, um estudo realizado por um grupo de pesquisadores do MIT, viralizou na internet, com dezenas de artigos, comentários e postagens inflamatórias em plataformas de redes sociais e o aparente consenso de que usar Inteligência Artificial nos deixaria mais burros.

A pesquisa comparou três grupos de estudantes universitários durante tarefas de redação de ensaios: um usando apenas o ChatGPT, outro utilizando mecanismos de busca tradicionais, e um terceiro sem qualquer ferramenta externa. Usando EEG para monitorar a atividade cerebral, os autores observaram que os participantes que usaram apenas o cérebro ativaram redes neurais mais amplas e complexas. Já os que usaram o ChatGPT apresentaram conectividade neural mais fraca, menor engajamento e menor capacidade de lembrar ou citar o que haviam acabado de escrever. A principal conclusão foi a de que a dependência excessiva dessas ferramentas pode gerar o que os pesquisadores chamam de dívida cognitiva: ao delegarmos continuamente processos mentais à IA, reduziríamos a consolidação da memória, o esforço analítico e a sensação de autoria.

As descobertas da pesquisa, ainda que nos informem de efeitos importantes à respeito do uso de IA na cognição humana, foram reproduzidas de maneira extremamente alarmista, pautando que o uso de IA pode ser ruim para o cérebro, ou deixar as pessoas menos inteligentes. Fora do Brasil, a The Times disse explicitamente que usar o ChatGPT pode tornar as pessoas estúpidas. Nas plataformas de redes sociais, onde os resultados do estudo circularam com níveis diferentes de precisão, há o que parece ser um consenso: estamos cada vez mais dependentes de IA, e, como resultado, estamos nos tornando cada vez mais burros.

Aqui vale mencionar que essa crítica carrega um viés de classe que raramente é nomeado: A ideia de que usar o ChatGPT emburrece parece partir da suposição de que todos têm tempo, energia e condições de aprender, pensar, escrever e revisar sozinhos.

Poucas são as reflexões que voltam à origem: por qual motivo somos obrigados a recorrer à Inteligência Artificial no nosso dia-a-dia?

No Brasil, por exemplo, mais de 30 milhões de brasileiros ainda vivem sob a escala 6×1, forçando-os a viver na insalubridade do trabalho contínuo, com pouco ou nenhum tempo para o descanso cognitivo ou para o desenvolvimento criativo – e muitos destes ainda estudam, na expectativa de melhorar de vida. Enquanto isso, a produtividade é cobrada em ritmo industrial ao mesmo tempo em que a complexidade das tarefas aumenta sem nenhuma contrapartida em tempo, apoio ou formação. Além disso, o Brasil lidera rankings de ansiedade e exaustão no trabalho, com jornadas que frequentemente extrapolam o contrato formal. Segundo dados da PNAD Contínua, milhões de trabalhadores gastam mais de duas horas por dia apenas em deslocamento. Outro exemplo evidente dessa sobrecarga estrutural é o avanço das múltiplas jornadas. No Brasil, é cada vez mais comum que uma mesma pessoa acumule um trabalho formal, atividades informais para complementar a renda e, muitas vezes, responsabilidades domésticas não remuneradas, principalmente para mulheres. Esse acúmulo não só compromete a saúde mental, como também consome toda a energia disponível para qualquer forma de aprendizado ou reflexão mais profunda.

Mas quem pode se dar ao luxo de abrir três abas, consultar cinco fontes, redigir com calma e revisar com atenção? Até mesmo estudantes do ensino superior, que supostamente deveriam se dedicar exclusivamente à pesquisa e à formação, no Brasil, em sua maioria precisam conciliar os estudos com o trabalho, formal ou informal. Em cursos de graduação, muitos estudantes enfrentam jornadas duplas ou triplas, dividindo o tempo entre o estudo, o trabalho e, frequentemente, cuidados familiares. E a demanda acadêmica, tanto na graduação quanto na pós-graduação, tem se tornado cada vez mais intensa, não apenas em volume de leituras e entregas, mas também em termos de desempenho e produtividade esperada. 

Já na pós-graduação, a pressão por produtividade acadêmica, publicação constante e inserção em redes de pesquisa torna o ambiente ainda mais exigente. Muitos programas, por exemplo, exigem publicações em periódicos qualificados ainda durante o curso, como critério para a conclusão da dissertação, tese – ou para ser empregado no futuro em alguma universidade. Essa exigência se apoia em uma lógica produtivista que vincula mérito acadêmico à quantidade de publicações, uma métrica que define não só a avaliação individual dos pesquisadores, mas também os índices de produtividade dos programas de pós-graduação e suas respectivas notas junto à CAPES. Essas notas, por sua vez, determinam quais programas receberão bolsas e recursos, fundamentais para viabilizar pesquisas de qualidade.

O resultado é um ambiente onde estudantes já sobrecarregados com ensino, pesquisa, trabalho e responsabilidades pessoais precisam ainda atender à expectativa de publicar em periódicos qualificados, mesmo sabendo que os processos editoriais podem levar meses ou até anos. O avanço do conhecimento acaba sendo mensurado por volume e estrato, em vez de relevância ou profundidade, distanciando-se do propósito original da produção científica.

Produzir ciência de qualidade demanda tempo, atenção e apoio institucional, recursos que não estão disponíveis para a maior parte das universidades brasileiras. E quando nada disso está disponível – recorremos ao ChatGPT.

Para além dos nossos estudantes e pesquisadores, cujo trabalho é justamente produzir conhecimento, para imensa parcela da população – exausta, mal paga, sem tempo nem respiro – usar a IA é uma forma de continuar existindo em ambientes que exigem resultados rápidos com o mínimo de suporte. Até mesmo a terminologia escolhida, chamar isso de dívida, ou pior, preguiça cognitiva é ignorar que, para muita gente, o acesso à informação e ao tempo livre sempre foi um privilégio.

A falta de descanso oriundo de escalas predatórias, o tempo perdido no transporte, assim como a sobrecarga de tarefas e a informalidade crescente, faz com que o uso de ferramentas como o ChatGPT seja menos uma escolha livre e mais uma estratégia de sobrevivência cognitiva.

Mesmo que seja comprovada por outros estudos o problema da dívida cognitiva, o apelo ao uso de IA é menos causa e mais sintoma: estamos exauridos, mal remunerados, sobrecarregados e delegando à máquina não porque queremos, mas porque não conseguimos mais sustentar, sozinhos, o peso da expectativa de sermos permanentemente produtivos, criativos e eficientes.

O problema é o mesmo de sempre: o capitalismo.

A Inteligência Artificial, como qualquer tecnologia, não nasce nem boa nem má – ela é moldada pelas condições em que é desenvolvida, distribuída e usada. E, ao invés de liberar as pessoas do trabalho exaustivo, a IA está sendo incorporada à lógica da hiperprodutividade, ampliando desigualdades e aprofundando a precariedade. E, enquanto a população brasileira usa o ChatGPT para sobreviver num mercado de trabalho cada vez mais hostil, os que têm mais tempo, mais recursos e mais acesso usam a IA para acelerar ainda mais seus ganhos.

Não é a IA que ameaça nossa capacidade de pensar: é o modo como fomos obrigados a encaixá-la em uma rotina que já nos havia retirado essa capacidade. Se há um déficit cognitivo em curso, ele não começou com o ChatGPT, ele vem da longa erosão do tempo livre, da educação crítica e do direito ao ócio.

A Inteligência Artificial virou bode expiatório de um colapso muito anterior a ela: um colapso que não começa com algoritmos, mas com jornadas impossíveis, escolas sucateadas, salários estagnados e a naturalização da pressa num sistema que exige que o homem seja máquina. Não é o ChatGPT que está nos roubando a capacidade de pensar: é a fome, o medo da demissão, o cansaço crônico e a desigualdade de sempre.

Isabela Rocha é mestre e doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL UnB). Atualmente coordena o Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (GEPSI IREL UnB) e representa o Fórum para Tecnologia Estratégica dos BRICS+, em apoio à presidência brasileira do bloco, visando o desenvolvimento de infraestrutura tecnológica integra e soberana na União.

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Last Update: 24/06/2025