A guerra dos mundos (2025)

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O filme estrelado pelo rapper Ice Cube não é apenas uma adaptação do clássico de ficção científica de H.G Wells. Ele é uma crítica bem-humorada às tendências tecnototalitárias que se fazem sentir no governo Donald Trump.

Esse é um filme de ficção e algumas das tecnologias remotas de vigilância que são utilizadas pelo protagonista já existem. Ironicamente, entretanto, ele passa boa parte do tempo vigiando a filha grávida, o namorado dela e o filho rebelde.

O abuso de poder possibilitado pela assimetria tecnológica é um fato bem conhecido no Brasil. Ele está no centro do debate em torno da ABIN Paralela construída pelos Bolsonaro para vigiar e importunar adversários políticos de maneira ilegal com utilização de recursos públicos.

Will Radford faz o que bem entende com os recursos tecnológicos que estão à sua disposição. Ele vigia um hacker, orienta uma operação do FBI para prendê-lo e ao mesmo tempo vigia a geladeira da filha grávida e puxa a orelha dela ao vê-la em tempo real comprando alimentos inadequados. Assim como no filme, a inexistência de supervisão da atividade do agente público (ninguém observa o protagonista do filme) cria um ambiente em que as noções de lícito e ilícito deixam de existir. Algo semelhante ocorreu no caso da ABIN Paralela comandada por Alexandre Ramagem, pois ninguém observava o que os espiões picaretas do clã Bolsonaro estavam fazendo.

“A guerra dos mundos” também é um filme de ação em que o protagonista não participa pessoalmente da ação. Isolado em seu local de trabalho, cercado por computadores e telas luminosas, Will Radford cumpre suas funções públicas, bisbilhota os familiares e se comunica com autoridades acima dele durante a crise.

Os invasores que se alimentam de dados são uma alusão clara às Big Techs norte-americanas, que o governo Donald Trump elevou à condição de instituições mais importantes da estrutura público-privada dos EUA. Google, Apple, Facebook, Microsoft, Palantir, OpenAI e outras empresas de tecnologia conseguiram capturar imensas fatias do orçamento norte-americano e novos contratos com o Departamento de Defesa.

Imensos bancos de dados públicos estão sendo digeridos pelas Big Techs norte-americanas com a mesma voracidade que os datacenters são sugados pelas criaturas que invadem a terra no filme comentado. Todavia, enquanto na ficção os vampiros de dados espaciais são derrotados na vida real isso está muito longe de acontecer.

Nos EUA não existe absolutamente nada capaz de frear a cobiça por dados e por lucros das Big Techs. E elas contam com apoio incondicional do governo Donald Trump para impor essa mesma lógica parasitária em outros países. O Brasil resiste, mas o custo dessa resistência já está se fazendo sentir.

A sequência de fatos no filme é um pouco confusa. Os invasores primeiro atacam e destroem sistemas de produção e de distribuição de energia. Somente depois alguns deles se reúnem em volta dos datacenters para se alimentar. Impossível dizer como esses datacenters não foram desligados. Apesar de algumas falhas, o sistema de comunicação segue funcionando normalmente durante o ataque. Os alienígenas não gostam de se alimentar de dados transmitidos em tempo real?

Mas deixemos essas críticas de lado. O importante é que o expectador literalmente vê o filme na tela do computador do protagonista e dos smartphones dos personagens com quem ele conversa sobre assuntos oficiais, sobre questões familiares e sobre a crise que atinge o planeta e eventualmente sua filha. Will Radford permanece o tempo todo em seu local de trabalho, mas ele tem uma grande dificuldade de se concentrar no trabalho. A atenção dele é constantemente dividida.

Nesse sentido, o protagonista de “A guerra dos mundos” se parece muito com a maioria das pessoas nos dias de hoje. Todavia, as grandes empresas já utilizam softwares para monitorar todas as atividades de seus empregados enquanto eles estão logados nos seus sistemas. Isso, porém, não ocorre no caso do servidor público Will Radford (como também não ocorria na realidade em relação aos agentes da ABIN Paralela). Aqueles que vigiam a sociedade não gostam de ser vigiados?

A velocidade com que o agente muda do modo “servidor público em ação” para “pai preocupado com a filha grávida, o namorado dela e o filho rebelde” é insana. Mas ao contrário da maioria das pessoas, Will Radford consegue se sair bem. Ele não comete muitas gafes, exceto deixar o superior hierárquico dele aguardando a ligação enquanto conversa assuntos privados com seus parentes.

Os efeitos especiais do filme não são grande coisa. Mas isso não é capaz estragar o prazer de ver o filme. O efeito de realidade oriundo da permanente comunicação virtual entre os personagens é suficiente para sequestrar a atenção do expectador. Assim como Will Radford é um voyeur paranóico capaz de invadir sistemas públicos e privados para vigiar a filha, o expectador sente prazer de ser o voyeur de um voyeur.

Uma boa distração com um final interessante. Interessante e não improvável. Afinal, de vez enquanto um Snowden aparece e fura a bolha de segredos sujos virtuais norte-americanos.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Last Update: 14/08/2025