Em novembro de 2024, quando Ainda Estou Aqui começava a explodir nas bilheterias, associações ligadas ao cinema brasileiro mandaram uma carta para o presidente Lula, criticando o Ministério da Cultura (MinC).

O gesto tornava públicas as queixas que, em eventos e em rodas de conversa, o setor já vinha fazendo à ministra ­Margareth Menezes e a Joelma Gonzaga, responsável pela Secretaria do Audiovisual (SaV).

As insatisfações estavam ligadas, sobretudo, à suposta falta de ação do MinC para regular as plataformas de streaming no País e ao que era considerado um excesso de cotas nos editais públicos voltados à realização de filmes e séries.

Desde então, a ministra, a secretária do Audiovisual e o secretário-executivo da pasta, Márcio Tavares, têm procurado se posicionar com mais ênfase. Esta entrevista concedida em conjunto, a ­CartaCapital, ao fim da reunião de planejamento do MinC, no fim de janeiro, parece fazer parte desse processo.

Tavares: “A gente precisa passar para uma estrutura em que o financiamento público coexista com o privado”

Na conversa, os três, além de buscar sublinhar o que foi feito desde a recriação da pasta extinta por Jair Bolsonaro, insistiram que o setor audiovisual vive, no País, um momento inédito e promissor.

CartaCapital: O audiovisual é a área que mais cobra e critica o MinC?

Margareth Menezes: O ­audiovisual é uma atividade cara e a única no âmbito das artes que conseguiu construir uma institucionalidade própria, com uma agência reguladora e uma secretaria dentro do Ministério. Isso tudo é uma conquista do setor. Por isso, e pelo tamanho do retorno e do impacto trazido por filmes e séries, o audiovisual é um setor que se articula e chama atenção.

Márcio Tavares: O audiovisual sempre foi uma prioridade para a gestão, não só pelo histórico de organização, mas por ser uma atividade que mobiliza muitas artes, que viaja e tem enorme potencial para dar visibilidade ao País. Desde o início, reestruturamos as estruturas de governança e as políticas de fomento.

CC: Gostaria de ouvir da secretária Joelma como tem sido lidar com as pressões – muitas ligadas ao fato de que as políticas afirmativas dariam o tom.

Joelma Gonzaga: Acabei de voltar da Mostra de Tiradentes, onde iniciei todas as conversas falando das conquistas do audiovisual e, inclusive, de Ainda Estou Aqui, que repete os feitos de Parasita, da Coreia do Sul, sendo indicado tanto ao Oscar de Melhor Filme Internacional quanto a Melhor Filme. Quando me questionaram sobre o fato de o filme não ter usado a política pública, procurei fazer o setor pensar sobre a capacidade instalada de produção – fruto das políticas públicas – que permitiu que o filme fosse feito no Brasil.

 

CC: Carlota Bruno, produtora do filme, me disse que o próprio investimento francês passa pela política pública, porque se usou um acordo de coprodução.

Joelma: Sim, e se olhar os créditos, você vai ver que 95% da equipe é constituída por pessoas que se formaram e cresceram a partir da política pública e, em especial, da Lei da TV Paga, de 2011. Tivemos uma interrupção nas políticas, nos anos do inominável, em que o MinC e a SaV foram destruídos. Assumimos nesse cenário e restabelecemos o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), o Conselho Superior de Cinema; voltou a cota de tela; e subimos o teto de captação da Lei do Audiovisual, uma demanda antiga. Tiradentes exibiu 141 filmes, quase todos fruto de políticas públicas. E temos 13 filmes no Festival de Berlim, sem falar em Ainda Estou Aqui no Oscar. As políticas, a internacionalização, os acordos de coprodução, está tudo estruturado. É legítimo que o setor fique ansioso e combativo, mas a gente tem mais a celebrar do que a lamentar.

Vitrines. Além de ter Ainda Estou Aqui no Oscar, o cinema brasileiro tem 13 produções no Festival de Berlim, entre elas, O Último Azul, com Rodrigo Santoro e Denise Weinberg – Imagem: Globo Filmes e Sony Pictures e Globoplay

CC: O fato de Ainda Estou Aqui ter sido feito com financiamento privado possibilitou outros tipos de troca criativa, também com os investidores. É um tipo de troca que não acontece no FSA. Termos praticamente um único modelo de produção, baseado no fomento público, pode ser limitador não só em termos de fontes de recursos, mas até no desenvolvimento dos projetos?

Margareth: Nossa meta é fazer uma política de indústria, que diminua a dependência do fomento. Mas, se a gente pensar que o MinC foi extinto duas vezes (em 1990 e em 2019), o que o cinema brasileiro faz é heroico. Mas agora a gente tem essa proposta de falar e pensar em indústria.

 

CC: Essa proposta sempre aparece na história das políticas para o cinema…
Margareth: Mas agora é diferente. É a primeira vez que temos um volume de fomento como este (decorrente da Lei Paulo Gustavo e da taxa paga pelas empresas de telefonia e direcionada para o setor). O cinema brasileiro merece um maior fortalecimento, e temos trabalhado para isso, em conjunto com a Ancine.

Tavares: O que você fala está no horizonte das nossas preocupações. E a gente fala sobre isso com pessoas do setor – até porque nesta gestão ninguém se imagina dono da verdade ou da política, como já aconteceu aqui. Mas, ao mesmo tempo que temos humildade, estudamos e buscamos referências, seja da Coreia do Sul, seja da França, e estabelecemos comparativos. É importante que a gente reconheça e valorize o fato de o Brasil ser um dos países que fazem maior investimento público no setor. Somos um país de renda média com investimento no audiovisual superior ao de muitos mercados de alta renda. Com relação à indústria, a gente precisa de fato passar para uma estrutura em que o financiamento público coexista com o privado.

Margareth: “As pessoas parecem ter certa impaciência. Lhes falta olhar com mais justiça para o que temos feito”

CC: Você se refere ao privado não atrelado a mecanismos públicos?
Tavares: Sim. Mas, para que isso aconteça, é preciso investir em infraestrutura. Para uma empresa poder correr riscos, ela precisa ter um resguardo. Muitas vezes, fica um certo jogo de empurra porque o Estado faz o financiamento, mas falta infraestrutura para o desenvolvimento da dimensão de mercado. Agora estamos no Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) para, justamente, trabalhar a infraestrutura de estúdios, tributação e serviços. A partir do momento que tivermos uma infraestrutura adequada, mais empresas poderão prescindir do financiamento público. Ao mesmo tempo, a estrutura de financiamento público será fundamental para que se invista em novos realizadores, linguagens inovadoras e temas que talvez não interessem ao mercado. Estamos trabalhando nessa complementaridade e, em breve, isso vai ficar mais claro para o setor. Destruir é muito rápido, mas, reconstruir é demorado e, para colocar, além do alicerce, uma parede nova, leva ainda mais tempo. Acho que, em 2025, os efeitos dessa construção, que a gente tem chamado de “grande colheita”, vão ficar mais evidentes.

Joelma: O efeito Ainda Estou Aqui também pode fazer com que muitas empresas do setor privado olhem para o ­audiovisual e se sintam estimuladas a investir independentemente da política pública – algo de que a gente precisa. Estamos debruçados sobre uma política industrial e na conquista comercial para séries e filmes. Já estávamos nesse caminho, mas, este ano, depois do boom Ainda Estou Aqui, queremos adiantar coisas que estavam sendo pensadas mais para a frente. Levando em conta o volume de recursos que foram para a rua nos últimos dois anos e no tanto de filmes que vêm aí, temos de pensar em como essa produção chega à população – algo que não tem acontecido. Estamos pensando no macro da indústria do ponto de vista da infraestrutura, com formação e qualificação, inclusive porque teremos uma Film Comission (estrutura montada para facilitar filmagens em determinadas localidades) para atrair produções internacionais. Temos de lembrar que, em 2019, dois filmes brasileiros ganharam os principais prêmios do Festival de Cannes: Bacurau e A Vida Invisível, ambos financiados pela política pública. Então, não é só agora que entramos em alta internacionalmente. O que a gente precisa é ganhar escala.

Margareth: E para ganhar escala, a gente precisa desse projeto de industrialização. Vejo que o setor tem uma vitalidade, com muita gente da nova geração, e temos de atender também a diversidade e os novos. Então, voltando ao que você perguntou, o pessoal fala muito das políticas afirmativas, mas eu as vejo, primeiro, como uma política de acolhimento. O sistema de cotas no Brasil tem pouco mais de dez anos, e as cotas são relativas. As chamadas de coprodução internacional da Ancine, por exemplo, que contemplaram (em 2024) 72 filmes que vão ser feitos com 22 países, não tiveram cota. As pessoas parecem ter certa impaciência. E lhes falta, às vezes, olhar com mais justiça para o que fizemos nesse movimento de retomada. As críticas nos fazem olhar para coisas que talvez não tenhamos percebido. Nós lemos as cartas (enviadas pelo setor) e consolidamos os pontos, como a regulação do VoD. Mas mesmo antes de Ainda Estou Aqui, em 2023, os filmes tinham começado a ir melhor nas salas.

*Estimativas que ainda podem ser atualizadas pela Ancine
Fonte: Panorana do Mercado Cinematográfico 2014–2023 (Ancine) e OCA (Ancine)

CC: Não muito, né? O market ­share do cinema brasileiro ficou abaixo de 4% em 2023 e, em 2024, antes da estreia de Ainda Estou Aqui e O Auto da Compadecida 2, estava em 7% ou 8%.
Joelma: A gente produz muito filme, mas promove pouco o nosso audiovisual para a população. Os filmes não circulam o suficiente. Desde o fim do ano passado, a ministra tem pedido para a gente pensar em campanhas de promoção do cinema brasileiro. Estamos pensando também em trazer de volta as linhas de comercialização do FSA, até porque os filmes estrangeiros chegam aqui com um investimento em marketing incompatível com o nosso. A volta da cota de tela, com a inclusão da exigência de sessões de filmes brasileiros em horário nobre, também é importante. Mas tem uma série de outras coisas nas quais estamos trabalhando para buscar aumentar o market share. Temos também a questão das salas de cinema. Lançamos cem salas em 2024, mas precisamos de mais. A gente tem uma sala de cinema para cada 60 mil habitantes (no México, a proporção é de uma sala por 18 mil pessoas), e um circuito concentrado em poucas capitais. Temos debatido como ampliar esse circuito, talvez a partir das salas de cinema universitárias, de Institutos Federais, além da construção de mais salas. E não se pode falar em difusão sem falar em formação. A França tem uma política de valorização do audiovisual desde a primeira infância. A gente terá uma plataforma de streaming pública e estamos construindo uma política para os festivais de cinema. Os festivais são, muitas vezes, a primeira oportunidade para um filme chegar à sala, e são o lugar de formação do olhar e da possibilidade de interação com o outro, algo que temos perdido muito com o digital.

CC: Embora a produção seja grande, muito se diz que uma pequena parcela dela tem de fato algum potencial de diálogo com o público – pensando no público tal e qual o temos. Vocês concordam com isso?

Tavares: Não é verdade que os brasileiros não gostam do audiovisual nacional. As pessoas foram formadas vendo produtos audiovisuais brasileiros na televisão, que sempre apresentou histórias muito brasileiras. E eu acho que essas histórias poderiam estar entre as preocupações daqueles que estão desenvolvendo produções cinematográficas. Há filmes que são de vanguarda, há filmes para festivais e há os que são para ganhar plateias. A gente precisa conjugar as duas coisas: não é fazer isso ou aquilo. Se o Brasil quer ter uma indústria, precisa ter uma produção diversificada, com obras capazes de subverter a lógica da imagem, mas também dez, 15 filmes que conversem com a população. Talvez a gente tenha hoje um peso grande na esfera da produção mais de arte e nos falte ousadia nessa outra dimensão.

Margareth: O povo ama a música e as novelas brasileiras, então, acho importante que o setor audiovisual reflita sobre isso. Não somos nós que vamos dizer o que deve ser feito, mas este seria um bom momento de reflexão, porque temos uma janela de oportunidade. O Ministério da Cultura é a favor do Brasil, e não refuta o diálogo: o que a gente pode fazer juntos para aproveitar este momento? As duas coisas andam juntas: a necessidade de reflexão do setor e o investimento maior nos lançamentos. Os filmes ficam duas semanas nos cinemas e se vão para o streaming, então a divulgação é muito importante.

Joelma: “Para a regulação do VoD sair, o setor precisa estar unido. Chegamos a ter 60 emendas no Congresso Nacional”

CC: A ministra mencionou a música brasileira e, para além das enormes diferenças do que é produzir cinema e música, me pergunto se o fato de a música ter sido feita por gente de muitas camadas sociais não facilitou também o diálogo com mais gente. Muitos brasileiros fazem música. Durante muito tempo, poucos brasileiros fizeram cinema.

Joelma: Faz sentido. Historicamente, o cinema sempre foi feito por uma classe mais privilegiada, não foi uma linguagem democrática.

Margareth: Justamente por ser uma atividade muito cara. Acho que por isso são importantes as políticas de inclusão e os Arranjos Regionais (simplificadamente, uma política de coinvestimento entre o FSA e estados e municípios).

Joelma: Gabriel Martins, diretor de Marte Um, surge com os Arranjos Regionais. E vale lembrar que Marte Um é fruto de uma política afirmativa da SaV, a única colocada de pé até esta gestão. A gente retoma agora os Arranjos Regionais com uma gestão compartilhada entre SaV e Ancine.

CC: E o VoD? Dias atrás, Elisabetta Zenetti, executiva da Netflix, disse que a empresa apoia a regulação. A regulação. é uma bandeira do governo? Ela vai sair?

Margareth: Tem que sair. Temos, inclusive, o envolvimento dos ministros Haddad e Alkmin.

Tavares: É uma bandeira, e sempre foi. Publicamos um primeiro relatório do grupo de discussão do VoD no MinC em 2023, onde está estabelecido o patamar mínimo de 6% de Condecine (tributo específico pago por outros elos do setor) sobre o faturamento bruto das plataformas. A Condecine­ é um instrumento único, que inexiste em outros países. Então, muitas vezes, quando se discute tributação, os paralelos são simplistas e levam a resultados equivocados. Muito se diz que o governo não foi a campo pela regulação. Muita gente vive no imaginário de um momento em que um ato de vontade do governo com relação ao Congresso funcionava. Hoje, a gente precisa negociar e convencer os parlamentares. Os Projetos de Lei do VoD são de 2018, ficaram parados até 2023, e saíram da inércia a partir da ação do governo. No que depender da gente, a regulação será aprovada em 2025. Criou-se um mito de que o governo não fez nada.
Margareth: O que a gente já conversou com congressistas… Agora, é muito importante que o setor venha junto. Acho que os próprios congressistas podem ser sensibilizados por este momento.

Lei. Um dos objetivos da regulação do streaming é garantir que os direitos patrimoniais das produções locais, como Beleza Fatal, da Max, fiquem no País – Imagem: HBO Max

CC: No fim da década de 1990, quando se formou a onda que terminaria na criação da Ancine, um senador usou as conquistas de Central do Brasil para defender o apoio ao cinema brasileiro. Ainda Estou Aqui pode favorecer a regulação do VoD, mesmo sendo esta uma questão mais complexa?

Margareth: Estou com uma expectativa muito positiva.

Joelma: A gente precisa garantir uma primeira regulação, com contribuição financeira, manutenção da propriedade intelectual nas mãos dos produtores brasileiros e cota de catálogo, seguindo os marcos históricos da política pública. Mas, para a regulação sair, o setor precisa estar unido. Houve um momento, na discussão dos PLs no Congresso, que tínhamos 60 emendas.

Tavares: Precisamos de uma frente cívica pelo audiovisual brasileiro. •

Publicado na edição n° 1349 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“A grande colheita”?’

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Last Update: 13/02/2025