A globalização acabou? Para a China, é só o começo

por Márcio Sampaio de Castro

Quando a frota do navegador português Vasco da Gama chegou à costa da Índia, em 1498, concretizou, pela perspectiva europeia, um feito impressionante. Era a primeira vez que embarcações daquele continente navegavam em um oceano que não fosse o Atlântico. Para os habitantes de Calicute, a cidade alcançada a duras penas pelos portugueses, eram apenas alguns navios diferentes que preenchiam a moldura da orla local. Indianos, persas, árabes, javaneses, africanos e chineses se conheciam e se frequentavam, integrados pela chamada Rota das Especiarias. Um elo de trocas comerciais que unia esses povos há séculos. A chegada dos europeus iria desmantelar essa integração, transformando a maior parte desses locais em fornecedores de matérias-primas e de mão de obra barata pelos cinco séculos seguintes.

Nos anos 1990, na esteira do desaparecimento da União Soviética, o mundo foi apresentado ao conceito de globalização: a integração liderada pelos Estados Unidos de mercados financeiros, a transferência de plantas industriais dos países centrais do capitalismo principalmente para a Ásia oriental e o sudeste asiático e a consequente criação das chamadas cadeias globais de valor, com produtos sendo montados com peças manufaturadas em diversos locais diferentes.

A partir da grande crise sistêmica inaugurada em 2007, também conhecida como crise do subprime, os Estados Unidos e seus aliados da bacia do Atlântico Norte começaram crescentemente a se dar conta de que o modelo de globalização desenhado para manter os benefícios e as vantagens das economias centrais do capitalismo moderno lhes criou uma armadilha. A República Popular da China havia se tornado o maior parque manufatureiro do mundo, sendo responsável sozinha pela produção de quase um quinto da riqueza global e se tornando o principal parceiro comercial de cerca de 80% dos países ao redor do planeta.

Desde a administração de Barack Obama, não sem coincidência remetendo ao mesmo período da crise, os EUA vêm se esforçando crescentemente para enfraquecer os chineses, como haviam feito de maneira bem-sucedida com a então pujante economia japonesa, em 1985, a partir dos Acordos de Plaza. Na ocasião, forçaram os japoneses a valorizar seu câmbio e abrir sua conta de capitais, desmantelando as políticas de desenvolvimento coordenado daquele país.

Diante do desafio chinês, Obama criou a política de contenção denominada Pivô para a Ásia, buscando emplacar no campo econômico o Tratado Trans-Pacífico, uma área de livre-comércio que envolveria diversos países dos dois lados daquele oceano, excluindo a China, que sequer foi convidada para as negociações. Abortado por Trump em seu primeiro mandato, o Tratado foi substituído por uma política ainda mais assertiva e direcionada: a guerra de tarifas inaugurada em 2018. Joe Biden não só manteve a política de seu antecessor, como também procurou atrair países como Índia, Japão, Austrália, as Filipinas e até o Vietnã para um cerco militar e econômico contra o país governado por Xi Jinping. Em seus dois últimos anos de mandato, Biden chegou a emitir ordens executivas draconianas ameaçando cancelar a cidadania de cidadãos norte-americanos que colaborassem com o desenvolvimento de semicondutores para empresas chinesas e banindo os carros elétricos do país asiático do mercado estadunidense.

A errática guerra de tarifas da administração Trump 2.0 é, portanto, apenas mais um capítulo desse grande movimento inaugurado há quase duas décadas. Muitos analistas têm se adiantado para lamentar o fim da globalização, valendo-se de uma palavra antitética para definir o momento presente. Estaríamos vivendo um momento de desglobalização.  

A globalização chinesa

Abrimos este texto mencionando a antiga Rota das Especiarias. Em sua porção meridional, ela era conformada por conexões marítimas que interligavam desde a cidade de Quanzhou no litoral chinês até a cidade de Alexandria no Egito, passando por regiões como a cidade de Malaca, toda a península indiana, as localidades de Hormuz e Basra no Golfo Pérsico, toda a costa oriental africana, alcançando cidades como Zanzibar, Mombasa e Mogadíscio, para finalmente ingressar no Mar Vermelho e envolver os comerciantes da Península Arábica. Mais ao norte, rasgando o continente asiático de leste a oeste havia a conhecida Rota da Seda, imortalizada no Ocidente por figuras como o veneziano Marco Polo, ainda no século XIII.

No século XXI, é a Rota da Seda que dá nome ao mais conhecido projeto de integração chinês. Lançado em 2013, o Belt and Road Initiative (BRI) é um ambicioso projeto de investimento em infraestrutura que conta com o financiamento de instituições como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB, na sigla em inglês), do Banco de Desenvolvimento da China, o Silk Road Fund, além de recursos locais dos países envolvidos.  Segundo dados da Universidade de Fudan, em Shangai, até fevereiro deste ano 149 países haviam celebrado algum acordo no âmbito do BRI com desistências apenas da Itália (em 2013) e do Panamá (em 2025). Os investimentos do projeto são destinados a obras como construção e reformas de portos, aeroportos, rodovias, barragens hidrelétricas, terminais logísticos, ferrovias e infraestrutura urbana como metrôs, pontes e até mesmo uma cidade inteira, como a Nova Cairo, que está em construção no Egito. Estima-se que o montante de investimentos acumulados no período tenha chegado à casa de US$1,17 trilhão.

A partir da lógica comercial do mundo pré-expansão europeia, a China claramente reconstrói os laços de uma globalização. Ao desmantelamento das cadeias globais de valor propostas pelas últimas administrações estadunidenses, os chineses respondem com a formação de cadeias alternativas. O melhor exemplo pode ser visto no âmbito dos países da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático, na sigla em inglês).

A China reorganizou a cadeia de valores, funcionando como o polo central de uma constelação que envolve os países ligados àquela organização. Fábricas que manufaturam produtos de menor valor agregado, como motocicletas, têxteis e eletrônicos foram instaladas em países como Tailândia, Indonésia e Vietnã. Em 2016, os investimentos diretos estrangeiros chineses para a região foram da ordem de US$10 bilhões, enquanto os EUA e a União Europeia receberam mais de US$15 bilhões cada. Em 2023, a ASEAN receberia US$25 bilhões de investimentos contra menos da metade desses valores para os países do Atlântico Norte. Esses dados reforçam a percepção de que os chineses procuram premiar países que consideram amigos com investimentos generosos, fechando a torneira para aqueles que se mostram mais animosos. Constroem assim uma globalização à sua imagem e semelhança.

Por fim, a perna ainda nebulosa desse arranjo recai sobre as questões que envolvem a moeda. O poder do dólar norte-americano se impõe sobre o mundo de maneira crescente desde o final da Segunda Guerra Mundial. Ocorre que o uso recorrente de sua moeda como instrumento de coerção através de sanções econômicas tem deixado os Estados Unidos numa posição de desconfiança por parte de diversos países nos últimos anos. A consequência desse estado de ânimos tem sido o surgimento de diversos mecanismos de câmaras de compensação e moedas digitais que driblam o uso do dólar. Mecanismos com esse objetivo estão em desenvolvimento no âmbito do NDB (o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS), por sua vez, a Rússia conseguiu contornar seu banimento do SWIFT em 2022 valendo-se de sistemas próprios de liquidação de operações financeiras como o MIR, e mais recentemente o próprio ASEAN anunciou a criação de um sistema local de pagamentos entre os países membros, valendo-se de moedas digitais. Em todos esses casos há participação direta ou indireta da China.

A chegada de Vasco da Gama a Calicute sem dúvida inaugurou uma era de globalização que teve o Atlântico Norte como seu epicentro por séculos. O isolacionismo trumpista e sua guerra de tarifas denunciando os “males da globalização” tendem a fazer com que o centro da dinâmica capitalista migre definitivamente para a Ásia nos próximos anos. Os chineses só precisam esperar, sua teia já está praticamente montada.

Márcio Sampaio de Castro é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É professor nos cursos de Relações Internacionais e Propaganda e Marketing das Faculdades de Campinas (FACAMP), onde coordena o Grupo de Análise e Pesquisa sobre a China (GAP – China).

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Last Update: 16/04/2025