A rataria saiu da toca para corroer a democracia
por Marcelo Siano Lima
Ratos são mamíferos que se escondem da luz, transitam correndo como que amedrontados pela iminência de serem mortalmente feridos. Ao se depararem com o alimento, o devoram de forma voraz, despudorada. A FIOCRUZ, no Guia de Roedores do Brasil, indica a existência aproximada de 236 espécies de roedores mamíferos em nossas cidades. Via de regra, são associados a pestes e pragas ancestrais, causam nojo e temor, provocando nos humanos o aflorar dos instintos mais primitivos, voltados para a imediata extinção física do mamífero quando detectada a sua presença. São perigosos, por serem vetores que transmitem um número considerável de doenças, especialmente as ratazanas, que costumam atacar não apenas o alimento que tanto buscam, mas os indivíduos que delas se acercam. É recomendada, pelas autoridades sanitárias de todo o mundo, a sua extinção. Seu habitat são os esgotos, as regiões infestadas de lixo, os locais escuros, os terrenos abandonados, de onde saem, geralmente, na escuridão, de forma rápida e voraz, em busca de alimentos.
Como ratos, nas sombras, militares e civis planejaram e executaram uma estratégia de desestabilização institucional, entre 2019 e 2022, que, no limite, visava à perpetração de um Golpe de Estado e a imposição de um regime de exceção, rasgando a Constituição de 1988 e pondo fim ao mais longevo período de vida democrática da história do Brasil. Em áudio vazado pela Polícia Federal, um militar, contrariado com a indecisão do alto comando em endossar o golpe – excetuada a posição favorável do então Comandante da Marinha, Almirante Almir Garnier –, pede que seja feita uma reunião entre o Presidente Bolsonaro, que de tudo sabia, como consta de diversos depoimentos, apenas com a “rataria”, como ele define o grupo de sediciosos mais radicais, entre os quais se inclui. Da reunião, seriam expurgados os oficiais indecisos ou aqueles que se mantinham aferrados à legalidade e aos princípios constitucionais.
O inquérito encaminhado pela Polícia Federal ao Ministro Alexandre de Moraes apresenta, de forma contundente, evidências fáticas da participação direta do ex-Presidente Jair Bolsonaro (PL) em toda a urdidura do pretendido Estado de exceção. Este, em alguns aspectos, traz à lembrança o golpe de outubro de 1937, que instaurou a ditadura do Estado Novo (1937-1945), a qual, como observou o Professor e político Afonso Arinos de Melo Franco, manteve no poder quem lá já estava, o Presidente Getúlio Vargas, respaldado pelos poderosos generais Eurico Dutra e Pedro Aurélio de Góis Monteiro e por setores expressivos das elites políticas e econômicas.
O núcleo central de toda a trama ora objeto de indiciamento pela Polícia Federal objetivava a perpetuação de Jair Bolsonaro no governo da República, à revelia do desejo do eleitorado, como se fosse algo de “direito divino”, lembrando os monarcas absolutistas da Europa de priscas eras. Seria uma afirmação do sentimento autocrático de um Presidente e de sua farândola, que jamais prezaram pelo respeito à Constituição e às leis, pela preservação e desenvolvimento da Democracia, muito menos pelas instituições e os frágeis padrões civilizatórios que a sociedade brasileira, ao longo de séculos, foi duramente construindo.
Bolsonaro sempre manifestou sua simpatia pelo paradigma de governo da ditadura civil-militar de 1964 a 1985. Sua popularidade se expandiu para além da “família militar”, que sempre lhe canalizou apoio e votações expressivas e crescentes. Ele corporificava, em certa medida, a quebra do grande acordo firmado no período da redemocratização, que teve no então Ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves, seu principal estrategista. Não haveria conciliação com Bolsonaro no poder, haja vista que suas posições sempre forma mais próximas das frações mais radicais dos grupos militares.
Pelo acordo gerido pelo General Leônidas, firmado após a anistia de 1979, as Forças Armadas almejavam cancelar toda e qualquer iniciativa que pudesse atingir judicialmente seus membros em razão de participação nos atos de repressão, além de manter o espectro da tutela militar sobre a República, uma projeção dos militares brasileiros, desde 1889, que encenam o espetáculo farsesco de pretensos herdeiros do Poder Moderador, o qual somente existiu no Império e se concentrava tão só na pessoa do monarca. Algo esquizofrênico, mas que exala a sede de poder que nossos militares possuem. Algo, também, que refirma o modelo pactuado, sob receio da ação militar, que marcou a estruturação da Nova República, em 1985, e o texto da Constituição de 1988 referente às Forças Armadas, consubstanciado no artigo 142.
Nossos militares, e isso está na Constituição, não conseguem aceitar que integram, como servidores públicos, a estrutura do Estado, e que sua tarefa é a de atuar na defesa do país contra ameaças externas. Não abrem mão, como é cristalino no texto do aludido artigo 142, do papel de polícia, de forças prontas para lutar contra “inimigos internos”, ou seja, contra nacionais dentro de nosso território.
Estrategicamente, apoiado pelo “Partido Militar”, que nele projetou suas expectativas de retomar o controle do Estado e de todo o seu aparato, do qual foram afastados em março de 1985, com a posse do primeiro governo civil desde 1961, Bolsonaro, com um discurso populista e de grande aderência no imaginário social, foi se expondo em todo o Brasil, canalizando para si as expectativas mais reacionárias do pensamento autoritário brasileiro e de todo o seu capital simbólico, tirando da escuridão toda a “rataria” e seu ideário de sociedade e de relações sociais. Sob todos os aspectos, dentro de um paradigma democrático, isso é um retrocesso dos mais graves.
A campanha presidencial de Bolsonaro, em 2018, se beneficiou da grave crise institucional principiada nas jornadas de junho e julho de 2013, bem como da série de denúncias de diversos malfeitos que, verídicos ou não, conspurcaram os governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, bem como suas principais lideranças, entre 2003 e 2016 – quando se consumou o golpe judicial-parlamentar que derrubou a então Presidenta Dilma Rousseff a partir de denúncias frágeis e risíveis. O Brasil, de fato, começava a viver os efeitos brutais das guerras cultural e híbrida, que se tornaram o padrão, neste século, para a derrubada de governos legitimamente eleitos, sempre sob a orientação ideológica dos interesses geopolíticos de diversas agências do governo dos Estados Unidos.
A radicalização do discurso e das ideias do candidato Jair Bolsonaro ganhou o apoio de parcelas consideráveis da sociedade brasileira, que nele corporificaram o seu desejo de reversão de uma estrutura social mais democrática e inclusiva – algo inédito em nossa história, que sempre repeliram por jamais suportarem. No fundo, como observa a professora Isabela Kalil, membra do Observatório da Extrema-Direita, o chamado “bolsonarismo” se caracteriza como um movimento integrado por múltiplos atores, todos, em algum aspecto, ressentidos com o modelo de sociedade e o rol de direitos e garantias incorporados ao texto da Constituição de 1988, que desprezam de forma solene.
A campanha de Bolsonaro, como é sabido, valeu-se do desenvolvimento das tecnologias da informação e da popularização das plataformas digitais, tomando de assalto todo o ecossistema das redes sociais, utilizadas com competência para a produção e a disseminação do discurso de ódio, de uma realidade paralela – uma verdadeira disfunção cognitiva, a partir da distorção proposital dos fatos históricos, para a orientação e catequização das massas de seguidores e, por fim, para manter em permanente mobilização o conjunto de seus apoiadores e apoiadoras, voltados à luta intermitente, e com todos os meios possíveis, especialmente a violência, material ou simbólica, contra o “inimigo interno”.
Sabe-se que o “inimigo interno” é uma criação fictícia da qual se valem os grupos autocráticos de todas as espécies, sempre com o objetivo de obterem uma maior aderência social aos seus projetos de Estado e de sociedade. Contra o “inimigo interno”, satanizado de forma excessiva, se voltam os instintos mais primitivos dos seres humanos, materializados no ódio e no desejo do banimento e do cancelamento (morte) desse “inimigo”. No tempo de longa duração, a caracterização do “inimigo” vai sendo alterada, atualizada, sempre mantendo a força e a violência que a luta promovida contra ele é capaz de gerar.
A urdidura do golpe arquitetado e executado por Bolsonaro e seus cúmplices, que ocorreu e foi derrotado, hoje expostas no inquérito da Polícia Federal, já encaminhado pelo Ministro Alexandre de Moraes para a análise da Procuradoria Geral da República, inova nos detalhes sinistros. Seus autores, sem exceção, agiram crentes na impunidade histórica que recobre os sediciosos brasileiros. O país, por exemplo, tinha pleno conhecimento do chamado “gabinete do ódio”, que funcionava no interior do Palácio do Planalto, a alguns poucos metros do gabinete presidencial, e de sua ação deletéria na criação de um clima de instabilidade e de confrontação institucional permanentes, mas nada foi feito no sentido de conter sua sanha criminosa, mantendo impunes seus responsáveis.
Era notório, pois, que o Estado, e todo o seu aparato, estava sendo dominado pelo bolsonarismo, e esse dava curso à sua estratégia de “destruir tudo o que está aí”, como sempre apregoou o próprio Bolsonaro em seus discursos na campanha de 2018, e mesmo depois de eleito. Era a democracia liberal, na forma definida pela Constituição de 1988 e pelos marcos dos padrões civilizatórios, o que sempre desejaram revogar, por discordarem visceralmente de suas bases e do ideário que as formatou.
Enganaram-se os que consideravam Bolsonaro um mero personagem a ser utilizado como um simples instrumento na reversão do sucesso eleitoral que os governos progressistas obtiveram nas eleições gerais desde 2002. Aliás, um dos grandes equívocos das forças democráticas sempre foi o de desconsiderar a liderança de Bolsonaro e sua capacidade de mobilização das massas.
Enganou-se, também, a alta cúpula do “Partido Militar”, os oficiais generais, da ativa e da reserva, que consideraram que o ex-Capitão do Exército, uma vez no poder, respeitaria os princípios férreos da hierarquia e da disciplina que estão na base das Forças Armadas – Bolsonaro sempre foi um “mau militar”, como definiu o ex-Presidente da República, General Ernesto Geisel, arredio à cadeia de comando, radical em seus atos, corporativista, o que acabou por criar as condições para sua expulsão do Exército, determinada pelo General Leônidas.
Erraram, por fim, os grupos políticos de centro, de centro-direita e de direita, que, como o alemão Franz von Papen – líder conservador que avalizou a indicação de Adolf Hitler para o cargo de Chanceler, em 1933, e terminou por ele afastado tempos depois –, achavam-se capazes de controlar o “cavalão” (um dos apelidos de Bolsonaro) quando no poder, moderando suas ações conforme seus interesses. Foram expelidos no primeiro ano de governo pelo homem que achavam possível controlar, que o diga o General Santos Cruz, ex-Ministro-Chefe da Secretária de Governo da Presidência da República.
O que vimos, entre janeiro de 2019 e dezembro de 2022, foi um Bolsonaro se firmando como grande liderança de massas, sabendo agregar em torno de si os interesses de grupos sociais e econômicos de diferentes matizes, o que lhe assegurou um capital político-eleitoral que o torna, junto com o Presidente Lula, os líderes políticos de massas mais importantes da história do Brasil. Sua inflexão na direção da política pragmática dos Partidos com bancadas no Congresso Nacional, ocorreu, apenas, em razão do seu temor de enfrentar as centenas de pedidos de abertura de processo de impedimento que dormitavam, de forma proposital, nas gavetas do Presidente da Câmara dos Deputados – primeiro Rodrigo Maia, depois Arthur Lira.
A saída encontrada por Bolsonaro e seus assessores foi desastrosa para o país, para as instituições, para a fazenda pública e para os princípios éticos e o interesse coletivo. A fim de se blindar contra os pedidos de impedimento, Bolsonaro chancelou os acordos que permitiram que o Congresso Nacional controle uma fatia considerável do Orçamento da União, distribuídos através das emendas parlamentares. Uma subversão institucional promovida por um Presidente que desejava se salvar, despreocupado com a Constituição e com as prerrogativas inerentes a cada um dos Poderes da República.
Bolsonaro jamais respeitou a institucionalidade, pois a despreza, e avançou sobre toda a organização social e política do país, sempre buscando imprimir um caráter autoritário e reacionário a ela. Numa estratégia complexa e exitosa, estabeleceu com os grupos econômicos – especialmente os ligados ao agronegócio e ao capital financeiro especulativo –, com o fundamentalismo cristão – católico e protestante –, com as forças de defesa e de segurança e com o conjunto difuso de largos extratos de nossa sociedade uma relação de mútua representação de interesses. Ele operava, junto com sua súcia, os mecanismos que punham em prática o ideário autoritário desses grupos e pessoas, numa retroalimentação de energias poderosas que permanece até os dias atuais.
Bolsonaro não inventou nada, no tocante aos símbolos do imaginário autoritário brasileiro. Ele deu voz a esse imaginário, liberou suas energias brutais contidas, lançou o país em um quadro de conflagração permanente entre as instituições e os nacionais. Fiel à gramática do fascismo histórico, ele sempre soube que seu poder, e a capacidade de materializar as aspirações suas e de seu vasto conjunto de forças aliadas, somente seria viável se ele conflagrasse o país e assim o mantivesse de forma permanente. E foi o que fez, de maneira assaz competente, em que pese o desastre administrativo e econômico de seu governo.
Esse cenário nos ajuda a caminhar pelo labirinto de toda a trama golpista que, agora, jaz exposta no inquérito da Polícia Federal e, com certeza, nos próximos dias, ainda em andamento, evidenciará ainda mais as ações de desestabilização institucional e de revogação do Estado Democrático de Direito. Toda a trama golpista protagonizada pelo ex-Presidente Jair Bolsonaro e sua malta vai revelando, na medida da publicização do teor dos inquéritos conduzidos pela Polícia Federal, a fragilidade de nossas instituições e da própria democracia, bem como o acovardamento (cúmplice?) da sociedade civil e dos representantes políticos, que pouco ou nada disseram ou fizeram diante dos fatos que agora são revelados.
São fatos graves, não há dúvida, e merecem o repúdio de uma sociedade que deseja preservar e desenvolver a democracia. Mas há na sociedade brasileira esse sentimento de fervor democrático, que vá além da norma constitucional e viceje em todo o tecido social, ou, ao menos, na maior parte dele? Trata-se de um questionamento vital, que precisa ser investigado e respondido, sob pena de vermos o Supremo Tribunal Federal (STF), através de alguns de seus ministros, travar a batalha em defesa da democracia de forma quase isolada, sendo confrontado de maneira permanente por frações numericamente importantes de nossa sociedade.
O imaginário social brasileiro, desde sempre, normalizou o pensamento autoritário, pois este se localiza na base de estruturação deste País, desde 1500. Ele acolheu, conviveu e legitimou governos de exceção ao longo da nossa história. Não foi diferente com Bolsonaro, muito pelo contrário. O que o inquérito policial agora nos revela é a complexidade e a extensão dos atos que seriam praticados para a reversão do resultado eleitoral de outubro de 2022. Não seria apenas uma “quartelada”, um motim, mas algo bem mais sério. Está nos autos do inquérito o plano de assassinar o Presidente e o Vice-Presidente da República eleitos, bem como o então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Alexandre de Moraes, caracterizando a introdução em nossa história de um elemento trágico, a prática do crime de magnicídio.
Os golpistas pretendiam promover um encarceramento em massa e um “banho de sangue”, evocando três episódios sinistros de instauração de regimes de exceção no século 20: o Golpe de Estado da Indonésia, em 1965, o do Chile, em 1973, e o da Argentina, em 1976, todos causadores de milhares de vítimas, “inimigos internos” da ordem militar estabelecida com o apoio direto do governo dos Estados Unidos, bem como do grande capital.
Previam prisões em massa e a criação de centros de detenção, designados de forma assustadora como “Auschwitz” – o grande campo criado pelo regime nazista para produção de materiais diversos e, principalmente, para a concretização de seu plano de extermínio dos “inimigos internos” de toda a ordem. Seriam, na prática, centros de detenção, de tortura e de extermínio, criados para tal fim, algo bem mais complexo que o uso do estádio “Caio Martins”, em Niterói (RJ), e do navio “Raul Soares” como campos de aprisionamento no período da ditadura civil-militar de 1964. Talvez, pois o inquérito ainda não nos revelou a extensão desse projeto homicida, o “Auschwitz” bolsonarista fosse um aparelho mais próximo da “Casa da Morte”, que funcionou em Petrópolis (RJ), e das instalações do DOI-CODI em São Paulo (SP), locais destinados ao suplício e à supressão da vida de opositores do regime civil-militar de 1964.
Seria a consagração do Estado de Exceção permanente, do qual nos fala o pensador alemão Walter Benjamin em sua obra, reafirmada pelo filósofo Giorgio Agamben em estudos deste século. No caso, numa perspectiva foucaultiana, os corpos seriam elementos não apenas tutelados, cerceados em suas capacidades, mas postos sob o estrito controle de um Estado e de seus verdugos, tendo o extermínio como finalidade, por serem os indivíduos desprezíveis, “matáveis”.
A inviabilidade do Golpe urdido tornou seus autores mais radicais insanos, quase desesperados. O apoio do Império já havia sido peremptoriamente negado pelo próprio Secretário de Defesa dos Estados Unidos, o General Lloyd Austin, em visita feita a Brasília, no mês de julho de 2022, durante a 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas. Sem o apoio imperial, diferentemente de 1964 e de 2016, nenhum movimento golpista prospera no Brasil, até porque, como observa o Professor Manuel Domingos Neto, nossas Forças Armadas e seus quadros se julgam uma extensão de toda a esteira de comando do Pentágono.
A decisão estadunidense foi, também, compreendida pelo próprio Bolsonaro que, como é notório, trata-se de uma pessoa cuja coragem e audácia se circunscrevem, no mais das vezes, ao plano da retórica e da reiterada incitação à subversão institucional por parte de outrem. Antes de terminar o ano de 2022, ainda Presidente, Bolsonaro viajou, ou se evadiu, para os Estados Unidos, deixando seus seguidores e seguidoras participantes da conspiração criminosa órfãos do seu líder em solo pátrio. Mais uma vez, repetindo seu padrão comportamental clássico, o então Presidente se afastou da cena da crise que ele próprio criou. Isso é comum em Bolsonaro sempre que surgem evidências de problemas judiciais ou de natureza política séria que o possam afetar ou a seus familiares.
Bolsonaro, hoje, em decorrência dos fatos revelados pelo inquérito da Polícia Federal, procura desesperadamente transferir para alguém as responsabilidades que lhe são inerentes em toda trama. Tenta blindar-se de forma tosca e farsesca diante de evidências e fatos largamente revelados e que lhe comprometem. Neste momento, na iminência de ver acolhido o inquérito da Polícia Federal pela Procuradoria Geral da República, o que poderá resultar, após o devido processo legal, em sua condenação à pena privativa de liberdade, Bolsonaro, de forma cândida e amedrontada, como que zombando dos fatos, implora por anistia e prenuncia a sua possível fuga do país, algo normalizado no noticiário das mídias corporativas, que, mais uma vez, desprezam, por acumpliciamento, toda a complexidade desse ato por parte de alguém como o ex-Presidente – reiteramos: alguém envolvido diretamente na definição de toda a trama golpista e assassina.
A loucura movida pelo desespero tomou conta dos arquitetos e operadores do Golpe, civis e militares, que se viram bloqueados em seus movimentos por ordem superior. Talvez aí resida a explicação para a forma pouco sofisticada e, mesmo, tragicamente atrapalhada, com a qual foram definindo, à revelia da negativa imperial, os planos para a perpetração do Golpe. Contavam com oficiais radicalizados das três forças, juntamente com uma massa de pessoas que acorreram, de outubro de 2022 a janeiro de 2023, às portas dos quartéis por todo o País, clamando pela intervenção militar, repudiando o resultado eleitoral, em uma pantomima cruel e trágica, nunca risível, que só teve fim após a intentona fracassada de 8 de janeiro de 2023, quando fugiram, como ratos, da luz da democracia, que tanto temem.
Nos esgotos subterrâneos, seguiram elaborando planos de assassinato, de formação de junta de governação, de discurso decretando Estado de Sítio – uma previsão inscrita na Constituição, de desestabilização permanente da ordem institucional e da vida brasileira, difundindo na potência máxima o discurso de ódio, a radicalização de atos de insubordinação e de quebra da ordem. Tudo para a criação do caos, momento em que, mais uma vez, nossas Forças Armadas, com apoio de segmentos civis, se apresentariam à Nação como a única instituição capaz de reverter a crise, como “salvadores da Pátria”, exercendo, como bem explica o Professor Francisco Carlos Teixeira, a representação farsesca de sua projeção como legítimos tutores da República.
Registremos que esse pensamento intervencionista, que se vale do golpismo, está no DNA das Forças Armadas Brasileiras, em seu CNPJ. Mas “deu ruim”, como se diz popularmente, pois frações importantes das Forças Armadas entenderam o recado do Pentágono, e se perfilaram na defesa da ordem constitucional que, em algum momento, tentaram estilhaçar. Sem unidade das Forças, e com o veto do governo dos Estados Unidos, o golpe estava condenado ao fracasso, diferentemente dos atos de guerra assimétrica e do terrorismo interno, elementos preocupantes que caminharam junto com o projeto de Golpe, presentes, de fato, na gramática dos grupos radicais de extrema-direita, contaminados por anos de guerras cultural e híbrida.
Esses grupos, é importante registrar, sabem de sua força eleitoral, expressa no enorme quantitativo de parlamentares, Governadores e Prefeitos eleitos em 2022 e em 2024. Sabem que o pensamento autoritário e suas teses, bem como o neoliberalismo – a “nova razão do mundo” – foram desviando o Brasil para a direita no espectro político, o que aguça a realidade paralela onde habitam. Sabem, por fim, como define o Professor João Cézar de Castro Rocha, que o Brasil “normalizou o absurdo”, no caso, a completa subversão da ordem institucional e dos padrões civilizatórios, criando todo um campo propício para suas ações delinquentes.
A cidadania brasileira, ao menos aqueles setores que defendem a democracia, está assistindo atônita às revelações trágicas da trama golpista. A cada dia, uma nova informação aterrorizadora nos é trazida ao conhecimento. A cada dia, percebemos, como disse o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luís Roberto Barroso, que jamais “estivemos mais perto do que imaginávamos do inimaginável”. A rataria golpista foi contida, ineditamente indiciada – algo nunca antes ocorrido com movimentos sediciosos de militares brasileiros –, bem como seus planos sinistros, mas persiste, de forma perigosa, um punhal, e este não é verde e amarelo, sobre a garganta da democracia brasileira, frágil e atacada por dentro pelas forças de extrema-direita que integram os poderes da República.
As estratégias das guerras cultural e híbrida, a normalização do absurdo, o ódio às instituições e, entre os nacionais, a negação de acesso a direitos constitucionais e fundamentais, a permanente tentativa de tutela do Estado pelo capital financeiro e especulativo e pelas Forças Armadas e de segurança pública, os problemas econômicos que afetam grande parte da população, são elementos propiciadores de que episódios de radicalização permanente, como a recente explosão e morte de um terrorista na Praça dos Três Poderes em Brasília (DF), passem a integrar a realidade brasileira.
Triste realidade, a de um País duramente marcado pela ausência de direitos e de Estado em territórios, urbanos e rurais, de grandes proporções geográficas e de alta densidade populacional. São territórios que vivem sob a égide de um poder privado, paraestatal, das milícias e de toda a sorte de organizações criminosas. Territórios, como bem observa o Professor Luiz Eduardo Soares, nos quais os brasileiros e as brasileiras residentes desconhecem o que seja Estado, direitos e garantias constitucionais, visto que estão sob a autoridade de um ente paraestatal e criminoso. O bolsonarismo, que na origem tem uma profunda ligação com as milícias do Rio de Janeiro, assim, pode ser considerado um movimento exitoso, pois contribuiu, ainda mais, para o alargamento de toda a perigosa fratura social que divide o Brasil e corrói as bases de sua frágil democracia.
Com a vitória eleitoral de Donald Trump, que voltará a presidir os Estados Unidos a partir de janeiro de 2025, e a consequente ascensão do empresário Elon Musk – um dos ícones da extrema-direita mundial, à condição de assessor direto do novo governo, a poderosa organização de extrema-direita mundial, o movimento, ganhará força considerável. Além do respaldo político de Trump, contará, de forma ainda mais sólida, com o respaldo de Musk e de suas empresas de tecnologia e de informação.
Bolsonaro e seus parceiros, civis e militares, alimentam o projeto de que o futuro Presidente dos Estados Unidos, de quem é aliado, interfira na vida interna brasileira, de forma a livrá-lo das acusações sérias das quais inevitavelmente escapará. Fará Trump esse movimento em auxílio a Bolsonaro e ao bolsonarismo? Teremos que aguardar o desenrolar dos fatos, mas, com certeza, a extrema-direita brasileira passará a contar, em 2025, com um cúmplice de peso no plano mundial, ainda que uma grave crise venha corroendo as bases desse poder, antes imperial, dos Estados Unidos
São tempos preocupantes nestes tristes trópicos. Todo e qualquer mortal sabe que ratos proliferam em quantidades inimagináveis, especialmente quando as condições lhes são propícias. O Brasil, hoje, está, aparentemente, propício a essa proliferação, que será enfrentada, mas provocará cizânia e destruição, seguindo o projeto estratégico meticulosamente arquitetado pela extrema-direita mundial através de sua organização, o movimento, à qual se associa a sua fração no Brasil. São tempos de luta política, de posições firmes, e tememos que a democracia brasileira esteja sendo testada em seus limites a cada instante, em um quadro de instabilidade constante e de contaminação do imaginário social pelo ideário extremista e suas práticas de terror. A subordinação dissimulada das Forças Armadas ao poder civil constitucional, como definido pelo Professor Rodrigo Lentz, continuará a ser o padrão comportamental característico dos militares, como o é desde a proclamação da República, em 1889.
O Brasil seguirá imerso em uma luta entre os nacionais e suas distintas concepções de Estado e de sociedade. É uma luta, no fundo, entre a Democracia e a autocracia, entre a civilização e a barbárie, entre a luz e os esgotos sombrios. Muito cedo, em termos históricos, para quaisquer prognósticos quanto ao resultado desse embate. Estejamos alerta, pois, como diz a canção de Caetano Veloso, “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, pois esta, e o plano ora desvendado, era certa para os que se perfilam em defesa da democracia. Estejamos alerta, pois, “descansar não adianta, quando a gente se levanta, tanta coisa aconteceu”, como preconiza a canção de Erasmo Carlos, “É preciso dar um jeito, meu amigo”, bastante ouvida recentemente frente ao sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Moreira Salles Júnior, que, por si, é um grande alerta para que nos coloquemos unidos aos que se perfilam em defesa da democracia.
Marcelo Siano Lima – Historiador, professor, assessor parlamentar e consultor político. Doutorando em Direito e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV)
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