Historiadores e cientistas sociais vêm mostrando, há décadas, que a dimensão “técnica” da ciência não pode – e não deve – ser dissociada de sua dimensão “política”. Conhecimento e compromisso social, afinal, caminham juntos. A atuação de Nísia Trindade Lima à frente do Ministério da Saúde e o processo lamentável de sua fritura impõem essa reflexão à sociedade brasileira. Mas de qual política estamos falando?
Quando Nísia foi escolhida, em 2022, para reconstruir um ministério em frangalhos, seu nome foi festejado pelos que reconheciam sua incontestável qualificação como cientista e gestora da maior instituição de ciência, tecnologia e inovação em saúde do país, a Fiocruz. Entretanto, vale frisar que todo esse prestígio foi fruto não apenas de sua competência técnica, mas de sua atuação política.
Cientista renomada internacionalmente, Nísia vem pautando sua carreira de cerca de 40 anos como servidora pública pela defesa inabalável da saúde como direito universal e pilar da democracia, conforme estabelecido pela Constituição cidadã de 1988. Na presidência da Fiocruz, atuou de modo decisivo para que o Brasil enfrentasse a pandemia de covid-19, crise dramaticamente agravada pela ação (ou inação) de um governo negacionista. Sua firmeza e habilidade políticas garantiram a imunização da população brasileira num momento em que, na ferrenha disputa mundial pelas vacinas, os países mais ricos estavam, como sempre, na dianteira. Isso é fazer política.
A condução que Nísia imprimiu à pasta da Saúde explicitou que a concepção e a prática que norteiam sua atuação pública não são a de uma política restrita à dinâmica partidária. A política da então Ministra Nísia sempre foi aquela pautada nos valores e princípios, inegociáveis, que fizeram nascer o SUS e cuja defesa exige, sobretudo atualmente, uma coragem rara até entre os experientes políticos de Brasília. Em pouco mais de dois anos, recuperou o Ministério da Saúde, que havia perdido sua credibilidade como autoridade sanitária federal. Restituiu a respeitabilidade do Brasil no circuito da saúde global. Reconstruiu o SUS, inclusive ampliando alguns de seus mais importantes programas, como o Farmácia Popular, agora 100% gratuito. Aumentou a vacinação infantil, reconquistando o certificado de país livre do sarampo, e retomou inúmeras obras nas unidades de saúde em todo o país. Reestruturou os combalidos hospitais federais do Rio de Janeiro.
Sua gestão foi também de recordes: de cirurgias no SUS, de inscrições no Programa Mais Médicos e de investimento nos laboratórios públicos para a produção de imunizantes brasileiros, como a vacina da dengue, que estará acessível à população a partir de 2026. Isso é fazer política.
A primeira mulher cujo retrato foi colocado, no saguão do Ministério da Saúde, na sequência dos 49 homens que por ali passaram demonstrou sua habilidade política não apenas por todas essas entregas, mas por ter enfrentado, de cabeça erguida e sem precisar recorrer ao habitual expediente masculino do “falar grosso”, as investidas do Centrão para tomar-lhe o cargo. A sua política, portanto, se opõe à “retórica” naturalizada do machismo: a de que se trata de assunto exclusivo para homens fortes, que são até “maus” quando necessário. É a política do cuidado, ética, respeito, diálogo, negociação, dignidade e construção coletiva de novos mundos. Representa a resistência, uma alternativa mesmo, a essa política (em crise, aliás, entre jovens e mulheres) dos “homens fortes e até maus”.
Em tempos sombrios, é urgente que saibamos qual política vamos querer para o século XXI.