À frente, o reflexo do retrovisor, por João C. Tupinambá Arroyo

À frente, o reflexo do retrovisor

por João Claudio Tupinambá Arroyo

Em “Brasil no Espelho”, Felipe Nunes (Quaest) apresenta em livro uma radiografia detalhada das percepções dos brasileiros sobre si mesmos e sobre o país, neste 2025. Identifica como principal diagnóstico uma crise de identidade coletiva nos brasileiros que alimenta uma polarização política e oportuniza o risco de solução autoritária para os conflitos contemporâneos.

A metodologia baseou-se em uma ampla pesquisa quantitativa, com quase 10 mil entrevistados em todo o Brasil, visando mapear valores, crenças e contradições do brasileiro contemporâneo, para entender suas visões sobre fé, família, política e futuro, fornecendo um “mapa” para entender o país além do senso comum.

O estudo conclui que os principais grupos com alguma identidade são os conservadores-cristãos e os liberais-sociais. Mas que a falta de um Projeto de Sociedade que firme uma unidade de valor como nação, fragiliza a soberania do país e a decorrente internalização da riqueza que já produz, apartando no dia-a-dia a produção(somos o 10º PIB do mundo) do desenvolvimento social (somos o 84º IDH) percebido na qualidade de vida das pessoas com frustração, angústia e a explicação distorcida que não vale a pena ser brasileiro, o que aprofunda ainda mais a desvalorização da identidade nacional, a soberania e assim aprofunda o círculo vicioso.

Logo, a prioridade para a superação da sensação de caos, insegurança e medo, que abre a possibilidade de aceitação de soluções antidemocráticas, passa pela afirmação de valores positivos da identidade nacional, pelo fortalecimento das instituições democráticas e pela internalização da riqueza a partir da melhora das condições de vida e educação, de baixo para cima, performando um novo percurso estratégico para um desenvolvimento sustentável. Conclusões que já ajudam bastante a entender que a solução, jamais virá de fora, jamais virá de cima da pirâmide econômica, o que nos cobra efetivação de consensos inteligentes massificados e exercício de protagonismo enquanto iniciativa e responsabilidade.

Entretanto, quando este percurso entre diagnóstico e conclusão é confrontado com autores que exercitam a interdisciplinaridade, articulando sistemicamente conhecimentos como História, Antropologia, Geografia, Cultura, Psicologia, Política e Economia, compreendendo a Filosofia, visão de mundo, como amalgama transversal, torna-se evidente que a dimensão subjetiva analisada por Nunes não pode ser compreendida de forma isolada das estruturas econômicas, politicamente dependentes e geopolíticas globais que vem forjando o lugar do Brasil no mundo desde o século XVI, com o Pacto Colonial. No retrovisor, as “drogas do sertão”, no reflexo a frente, as “comodities”.

Na pesquisa, a leitura da psicologia política do eleitor brasileiro, vem apartada de seu papel econômico e cultural refletido no consumo cotidiano que sustenta e financia todo o edifício econômico no país. Argumenta que medo, ansiedade, ressentimento e desconfiança generalizada estruturam a visão que os brasileiros têm de si mesmos e do país, sem revelar a estrutura educacional e simbólica mantida desde a colonização para que tal processo se renove e se atualize continuadamente, com resistências inócuas e pontuais. A pesquisa ajuda a entender o terreno fértil para o avanço de discursos de força, salvacionismo e soluções autoritárias. Mas não explica que este fato apenas confirma o sucesso do projeto que nos submete intencionalmente pelos agentes que se revezaram como senhores em nossa história, a partir de 1.500.

E, ao não identificar estes fatores geoestratégicos intencionais, promove a subestimação da força de uma nova subjetividade autoconstruída a partir dos biomas e territórios como determinantes socioeconômica na estruturação democrática de um novo modelo de desenvolvimento que, pode se inspirar a partir de conhecimentos próprios, e até ancestrais, sem qualquer xenofobia mas nenhuma ingenuidade. Em outras palavras: não há espelho sem contexto cultural-histórico-material. Ou seja, a identificação de uma crise de identidade é a identificação de um movimento – só não há crise na estagnação plena, a morte, por exemplo. Logo, se é movimento é preciso identificar o que provoca o deslocamento e em que direção, no caso, quem ganha? quem perde? nesta crise do projeto nacional.

Muito antes, Maria da Conceição Tavares argumentou que o subdesenvolvimento brasileiro não é uma etapa, mas uma condição reproduzida pelas estruturas do capitalismo mundial. O país vive em constante situação de vulnerabilidade externa, crescendo aos saltos e recaindo em crises. Essa dinâmica produz um sentimento nacional de: instabilidade, frustração e falta de futuro previsível. Coincidência?

Esses sentimentos ecoam diretamente nos dados apresentados por Nunes: logo a ansiedade do eleitor não é apenas psicológica, mas produto de um capitalismo dependente que lhe avilta nas relações sociais no cotidiano.

Assim, o “espelho” brasileiro está trincado pela própria história da dependência. O medo que alimenta o autoritarismo não nasce só de narrativas políticas, mas da experiência concreta de um país sempre à beira do colapso econômico. E, da farta operação das grandes mídias dos neocolonizadores.

Um pouco mais recente, Ladislau Dowbor complementaria esse diagnóstico, mostrando que a crise democrática no Brasil — e no mundo — está relacionada à financeirização e à captura do Estado por conglomerados corporativos transnacionais. Para ele: o poder econômico está desconectado do poder político e o sistema democrático perdeu capacidade de regular o grande capital – ocorrendo o contrário, desde a II Guerra, como nos ensina Karl Polanyí em sua Grande Transformação.

Quando Nunes fala da desconfiança do brasileiro nas instituições, Dowbor explica o porquê: não é apenas percepção subjetiva, é uma experiência real de impotência democrática diante de um sistema cujo centro decisório não está na sociedade, mas em estruturas corporativas globais. Mais claro, impossível.

Enquanto não há reação para conter a fragmentação e desconexão educativa para que as pessoas não percebam sua própria realidade — somada à desigualdade e ao desamparo social — é óbvio que o estímulo à autoleitura como impotente e excluído, reforça o apelo a figuras “fortes” que prometem devolver ordem e soberania, mesmo que pela via autoritária.

De meu humilde aprendizado, destaco que a formação da identidade política brasileira — particularmente nas elites econômicas e periferias urbanas — é marcada por: desigualdade racial e territorial, exclusão histórica dos mecanismos de decisão, e ausência de projetos nacionais capazes de integrar os sujeitos populares.

Entendo que a disputa política no Brasil não é apenas ideológica, mas territorial e cultural: é a luta entre uma nacionalidade prometida e uma cidadania negada. Tento mostrar que a divisão não é apenas perceptiva: ela é material, vivida na experiência cotidiana de violência, ausência de direitos e invisibilidade política. E que não há como separar o desafio da emancipação político-econômica da emancipação subjetiva de quem se gosta e é feliz.

Essa materialidade perceptiva do propósito da emancipação horizontal é a base sobre a qual se constrói tanto a rejeição ao sistema político-econômico e psico-cultural opressor quanto a superação por soluções messiânicas, antidemocráticas. Neste processo, aprender a felicidade de fazer com as “próprias mãos” é uma construção afetiva e psicológica necessária, daí a necessária articulação entre as “Economias pela Vida” e os projetos do “Bem viver”, de onde vivo e proponho a adoção da Economia Solidária como Modo de Vida. Economia como definida pelos gregos antigos, o “cuidado com o funcionamento da casa” e Solidariedade como originado do latim, como aquilo que torna sólida uma relação humana, a reciprocidade.

Contudo, entendemos que o desafio contemporâneo é um consenso possível em torno da prioridade de reconstruir o projeto nacional, a partir dessas lentes multidisciplinares. Tendo como principal referência estratégica a superação das alternativas autoritárias e subordinadas ao grande capital internacional.

O objetivo comum que propomos é reconstruir um projeto de país capaz de gerar pertencimento, segurança e soberania. Sabendo que isto implica em 1. Política econômica voltada ao desenvolvimento produtivo casado com a construção de um novo padrão no comportamento de consumo que valorize o conhecimento local e o bioma na dinâmica do território. 2. Democratização do poder e desconcentração da riqueza, desde as organizações sociais mais básicas como a própria escola e a família. 3. Reconstrução da confiança institucional e interpessoal a partir de um “espelho coletivo” saudável.

Concordamos que sem esse conjunto estratégico sistêmico, o Brasil continuará oscilando entre: soluções autoritárias, subordinação ao capital global e uma democracia frágil, incapaz de responder aos anseios da sociedade.

João Claudio Tupinambá Arroyo, doutor em Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente e mestre em Economia pela Universidade da Amazônia, onde está pró-reitor de Pesquisa e Extensão. Pesquisador e militante da Economia Solidária desde 1999, 11 livros publicados, todos acessíveis como ebook. Pedidos para [email protected]. Siga @joao_arroyo

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN

Artigo Anterior

Pesquisas revelam que mês de nascimento nascem as pessoas mais inteligentes da turma

Próximo Artigo

China redefine parceria com a América Latina em resposta aos Estados Unidos

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter por e-mail para receber as últimas publicações diretamente na sua caixa de entrada.
Não enviaremos spam!