
A frase “Você sabe com quem está falando?”, segundo o antropólogo Roberto DaMatta, é o maior retrato da distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil. Não há forma melhor para alguém mais rico e poderoso impor sua superioridade na hierarquia social do que essa “carteirada” que nunca morre. Para o escritor, a expressão é uma “demonstração dos mais violentos preconceitos” e denota a faceta mais clara da desigualdade social no país.
“O rito do ‘sabe com quem está falando?’ nos coloca muito mais do lado das escalas hierárquicas e dos caxias — que sistematicamente queremos esconder ou, o que dá no mesmo, achamos que não temos a necessidade de mostrar”, afirma DaMatta em seu ensaio de 2020 sobre a frase. Para ele, “privilégio é exatamente a liberdade de poder fazer tudo”. Aqueles que se sentem autorizados a usá-la veem-se acima das regras comuns, como uma forma de ratificar sua posição no topo da sociedade.
“Todos os brasileiros sabem que a expressão é o reflexo ritualizado e quase sempre dramático de uma separação social”, escreve o antropológo. “O ‘sabe com quem está falando?’ é a negação do ‘jeitinho’, da ‘cordialidade’ e da ‘malandragem’, esses traços sempre tomados para definir, como fez Sérgio Buarque de Holanda, o nosso modo de ser”.
As elites, através de sua posição de poder, naturalizam sua autoridade e a subordinação dos outros. Em muitas interações cotidianas, a expressão é uma maneira de reafirmar esses privilégios e manter as distâncias sociais de forma visível e contundente. DaMatta traz o exemplo: “Na portaria de um hospital, alguém deseja entrar para ver um doente. O porteiro, porém, é intransigente e não deixa. Após um diálogo ríspido e surdo, o homem que deseja entrar diz: ‘Sabe com quem está falando?’, e mostra sua identidade de médico”.
Eventos semelhantes ao narrado pelo escritor acontecem todo dia, em que o status de um brasileiro mais rico é usado para desqualificar alguém considerado “socialmente inferior”. Em março deste ano, viralizou nas redes sociais o vídeo de uma mulher discutindo com um funcionário de uma loja e o humilhando com frases como: “Se ponha no seu lugar porque você é um qualquer. Qual é o seu salário? Eu ganho R$ 10 mil”.
VEJA: Mulher discute e humilha funcionário de loja: “Se ponha no seu lugar porque você é um qualquer. Qual é o seu salário? Eu ganho R$ 10 mil”. pic.twitter.com/ke51g0qIO2
— Parece fofoca (@parecefofoca) March 8, 2025
Outro caso que teve ampla repercussão durante a pandemia é o de Eduardo Siqueira, então desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi multado pela guarda municipal de Santos (SP) por não usar máscara, em julho de 2020. Em vídeo que viralizou, ele chama o guarda de “analfabeto”, rasga a multa na frente dele e tenta intimidá-lo dizendo que vai ligar para autoridades superiores.
Outro “cidadão não”, dessa vez não engenheiro, mas desembargador Eduardo Siqueira em plena pandemia, temos que conviver com pessoas assim pic.twitter.com/9Nkzsc8aRA
— ೃ✧ Ld ೃ✧🇧🇷🏴 (@Ld_Cml) July 19, 2020
Na mesma época, mais um episódio emblemático do “sabe com quem está falando?” veio à tona, quando a esposa de um engenheiro civil humilhou um vigilante sanitário em um bar no Rio de Janeiro. “Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”, disse a mulher ao profissional.
Ao se referir ao marido como “engenheiro civil”, a mulher se negou a aceitar o tratamento impessoal de “cidadão” e hierarquizou o valor da profissão como um argumento de autoridade, para assim invalidar o papel da fiscalização.
“Cidadão não. Engenheiro… civil. Formado. Melhor do que você”.
Se quiser entender o Brasil, só dar o play. pic.twitter.com/jkeUPPs47b
— Pedro Ivo Almeida (@pedroivoalmeida) July 6, 2020
“O ‘sabe com quem está falando?’, além de não ser motivo de orgulho para ninguém — dado a carga considerada antipática e pernóstica da expressão —, fica escondido de nossa imagem (e auto-imagem) como um modo indesejável de ser brasileiro”, escreve Roberto DaMatta.
O uso da frase é, portanto, uma realidade oculta nas representações oficiais de nossa sociedade, que prefere cultivar uma imagem de cordialidade. É uma forma de evitar a confrontação direta com as desigualdades, funcionando como uma válvula de escape para quem se vê em uma posição de autoridade e não deseja ser desafiado.
O fato de que essa frase persiste no nosso imaginário é reflexo de uma sociedade que, de acordo com DaMatta, lida com a desigualdade de forma cotidiana e, pior, a naturaliza. Ele aponta que “o ‘sabe com quem está falando?’ é uma vertente indesejável da cultura brasileira”. Essa atitude autoritária se manifesta nas interações cotidianas e nas dinâmicas de poder, mas raramente é reconhecida ou discutida de forma aberta.
DaMatta também sugere que o uso da frase está intimamente ligado à falta de aceitação do conflito e da crise na sociedade brasileira. “Tomamos, então, o partido de sempre privilegiar nossas vertentes mais universalistas e cosmopolitas, deixando de lado uma visão mais percuciente e genuína dos nossos problemas”, ele escreve.
“O ‘sabe com quem está falando?’ não é levado a sério em nossas reflexões (eruditas ou de senso comum), do mesmo modo que ainda não deu letra de samba”, observa ele. A expressão, por mais presente que seja, continua a ser vista como um comportamento negativo e indesejável, algo que não se integra à imagem que o Brasil tenta projetar de si mesmo. A sociedade prefere ignorar essa prática de hierarquização em suas representações públicas, embora ela seja tão visível no cotidiano.