
Se aplicarmos os conceitos maquiavelianos de “virtù” e “fortuna” para analisar o governo Lula, podemos constatar alguns paradoxos e ambivalências de como eles operam na conjuntura dos últimos meses. Relembrando que, de modo geral, a “virtù” é um conceito que expressa as qualidades e as virtudes do líder, sua capacidade de comandar e de conferir direção e sentido aos acontecimentos políticos. Ela está relacionada, por um lado, com meios (de diversas ordens como, por exemplo, a capacidade persuasiva e a força política e social) que o líder dispõe para agir e, por outro, com a qualidades morais para manejar os meios e liderar. Isto quer dizer que se um líder dispor de muitos meios de poder, mas não tem qualidades de comando e de liderança, poderá fracassar.
Já, a “fortuna”, é força que dá origem aos eventos contingentes, aos acasos e aos imprevistos. Ela está presente em todas as ações humanas e tem uma natureza ambivalente: pode ser boa ou má – pode favorecer ou prejudicar a liderança. Quanto menos atividade política e de comando um líder, um governo exerce, mais ele abre as portas para a ação desorganizadora da “fortuna”. Ou seja: ele terá menos controle dos acontecimentos, os outros sujeitos políticos ativos (incluindo a oposição ou os inimigos) criam espaços próprios de atuação, aumentando as zonas de descontrole e de ausência de governabilidade, impactando a realidade econômica, política e social.
A queda livre que o governo e Lula sofreram nas pesquisas, nos últimos meses, se deveu à sua falta de “virtù”, de ação, de direção e de comando. Os dados da conjuntura econômica indicavam algumas dificuldades, mas, no cômputo geral, o cenário não validava uma queda tão brusca nas avaliações. Então, os erros maiores foram de condução política e de direção de governo.
Com o susto, o governo, o presidente e alguns ministros iniciaram reações, aumentado a atividade política, a presença pública e dando maior visibilidade às realizações e programas. À essas reações se somaram também algumas mudanças dos ventos soprados pela “fortuna”, passando dos malefícios aos favores em relação ao governo. Esses favores podem ser identificados na aceitação pelo STF das denúncias oferecidas pela PGR contra Bolsonaro e outros líderes do movimento golpista, da desaprovação de 56% da população à proposta de anistia aos condenados pelos atos de 8 de janeiro, à falta de um movimento unificador da oposição e ao desempenho apenas razoável do governo Tarcísio em São Paulo.
O caos internacional causado pelo tarifaço de Trump também fez com que a “fortuna” sorrisse para Lula, por duas razões: 1) Bolsonaro e o bolsonarismo são associados a Trump. O presidente norte-americano é visto como alguém amalucado que semeia o pânico pelo mundo; 2) como contraponto, Lula age com racionalidade, critica o tarifaço, não radicaliza e vários de seus ministros operam soluções negociadas para evitar um estrago maior. Lula aparece como o líder que defende os interesses do país. É certo que o cenário está ainda instável e tomado por imprevisibilidades. Precisa ser decantado. Mas Lula e o governo vêm se posicionando bem e isto se transforma em ativos políticos positivos.
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A soma de maior atividade dirigente com os favores da “fortuna” tem se traduzido numa recuperação da avaliação do governo como mostra a pesquisa Datafolha. A avaliação positiva subiu de 24% para 29% e a negativa caiu de 41% para 38%. Somados os dois ganhos, são 8 pontos e isto é significativo. Mesmo assim, a avaliação continua bastante desconfortável.
Lula lidera em todos os cenários da disputa presidencial de 2026. Mas o conjunto dos números dessas e de outras avaliações e das avaliações de outros temas, mostram que, eleitoralmente, o país continua polarizado. Mesmo que o campo de direita saia dividido em 2026, o que ainda é uma cogitação, um segundo turno será disputado de forma acirrada e a margem do vitorioso deverá ser pequena.
Com Bolsonaro fora da disputa eleitoral, o candidato potencialmente mais competitivo da direita é o governador Tarcísio. Sua avaliação positiva no governo, pelo Datafolha, é de 41%. Trata-se de uma avaliação confortável, mas não extraordinária. Juntando essa avaliação com a recuperação do governo federal e com o desempenho eleitoral de Lula, dificilmente Tarcísio arriscará uma possível reeleição no estado de São Paulo em nome de uma empreitada arriscada na corrida presidencial.
Para Lula, o ideal seria chegar com uma avaliação positiva do governo no patamar dos 40% em 2026. Mas isto parece um pouco difícil. O mais provável é que o governo possa recuperar um patamar dos 36%, desde que faça a coisa certa, mostrando ativismo, capacidade de direção e melhoria e visibilização dos programas governamentais.
Conseguir aprovar no Congresso o projeto de isenção do Imposto de Renda até os R$ 5 mil e a cobrança para quem ganha acima de R$ 50 mil será importante para o governo melhorar o desempenho nos setores de renda média. Os dois pontos têm alta aceitação popular.
A inflação e o endividamento das famílias continuam sendo pontos vulneráveis nas camadas de renda baixa. Os bons dados da economia não serão suficientes se Lula e o governo não melhorarem o desempenho político e a comunicação, apontando um caminho de inovação e esperança para o futuro do país.
Embora a maioria da opinião pública reprove a tese da anistia, num placar de 56% contra e 36% a favor, esse jogo ainda está sendo jogado. O fato de a oposição ter conseguido o número suficiente de assinatura na Câmara para propor rito acelerado na tramitação do projeto da anistia mostra que a articulação política do governo continua frágil e com dificuldades de coordenar os interesses políticos de partidos de centro-direita que têm assento no Ministério.
O bolsonarismo está jogando esse jogo em três tabuleiros: nas redes, nas ruas e no Congresso. Com meias verdades e inverdades inteiras, os bolsonaristas procuram revestir a campanha com alta dose de emoção, apelando para os sentimentos de solidariedade ante supostas injustiças e perseguições. A dosimetria alta das penas dos condenados tende a se tornar um problema não só para o STF, mas também para o governo e os partidos progressistas e de esquerda. É preciso encontrar justificativas e argumentos sólidos para evitar de serem empurrados novamente para posições defensivas. Afinal de contas, o defensivismo político vem sendo a marca desse terceiro mandato. Não é uma posição confortável nas vésperas de uma disputa presidencial.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de “Liderança e Poder”
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