Durante muitos anos, a atriz Ana Paula Arós acordava dia após dia sem lembrar dos seus sonhos. Isso mudou quando ela mergulhou no processo criativo de Ao Vivo (dentro da cabeça de alguém), que estreou na quinta-feira 22 no Teatro do Sesi, em São Paulo, e segue em cartaz até dezembro. “Veja como o teatro é incrível: passei a sonhar loucamente todas as noites”, diz.
O motivo, segundo ela, é o texto criado por Luís Carlos Lopes, também diretor do espetáculo. A peça se passa na mente de uma atriz que, a caminho de um ensaio, tem uma epifania e começa a entender o universo. Ao voltar a si, já transformada por essa revelação, ela revisita sua trajetória e seus personagens, refletindo sobre a relação entre passado e futuro a partir do entrelaçamento entre memória e imaginação.
A amarrar tudo isso está a força do presente, sintetizado pelo próprio fazer teatral e enfatizado, no título, na expressão “ao vivo”. A aposta no “aqui, agora” responde, de certa forma, às angústias vividas por Lopes durante a pandemia de Covid-19: “Estava muito desgastado, sem perspectivas, e precisei reinventar um espaço de existência, de crença na arte, no País e na nossa força enquanto artistas”.
Esse impulso deu origem, em 2023, a uma plataforma de criação batizada como Voo Livre, com participação de atores da sua Companhia Brasileira de Teatro. A cada encontro, roteiros diferentes eram lidos, escritos e testados diante do público e de personalidades convidadas a somar ideias às cenas. Ana Paula participou de todos.
Ao Vivo amadureceu com o procedimento, mas sua origem é anterior a ele. O projeto nasceu de um duplo desejo de Lopes: trabalhar com base no clássico A Gaivota, de Anton Tchekhov (1860-1904), e criar uma obra para Ana Paula, com quem mantém uma prolífica parceria desde 2012, quando realizaram juntos Esta Criança, do francês Joël Pommerat. A montagem rendeu à atriz um Prêmio Shell.
Na produção agora encenada no Sesi, a peça a ser ensaiada é, justamente, a do dramaturgo russo. A escolha alude à história de Ana Paula, a quem coube encarnar Nina, uma inocente aspirante a atriz, em uma comentada encenação dirigida 50 anos atrás pelo argentino Jorge Lavelli. “Dizem que é muito perigoso falar algo para um autor, porque depois você vira personagem. Foi o que aconteceu”, afirma, rindo.
Para Lopes, a escrita de Tchekhov dá conta de componentes fundamentais da humanidade. “É uma peça pedagógica. Ela ensina a partir de muitas perguntas. O que é educação? O que é diferença de classe? O que os mais velhos podem nos ensinar?”, provoca. “Senti que precisávamos recuperar alguns princípios muito básicos daquele texto, mas achei melhor criar algo atravessado por eles, pensando a imaginação como um território de afirmação da vida que precisa ser ocupado urgentemente.”
“O teatro me ajuda a ter novas ideias, a não desistir, a não ficar deprimida”, diz a estrela televisiva
Se, na montagem de 1974, Ana Paula era uma jovem artista, hoje ela está mais próxima de Arkádina, a atriz veterana em quem Nina se espelha. Sua atuação não está, porém, atrelada exclusivamente à personagem. Ela é influenciada pelos demais atores com quem divide o palco e as referências trazidas por eles.
Tal proposta representa um desafio para Ana Paula, conhecida pelas figuras icônicas que interpretou nas novelas da Globo, como Heleninha Roitman, de Vale Tudo (1988) e Nazaré Tedesco, de Senhora do Destino (2004). Apesar do sucesso na tevê, ela nunca abandonou o cinema e o teatro, tampouco adotou a postura de celebridade distante do mundo real.
Na conversa com CartaCapital, realizada por chamada de vídeo, a atriz, cheia de alegria aos 77 anos, mostra-se entusiasmada ao falar das muitas primeiras vezes proporcionadas pela parceria com Lopes – que a acompanha na entrevista. Uma delas foi uma temporada inteira de Esta Criança nos CEUs, equipamentos culturais localizados nas periferias de São Paulo. Outra foi a turnê de Preto (2017), também com o grupo dirigido pelo dramaturgo, pela Alemanha, marcando sua estreia em palcos internacionais. Agora, ela coloca-se à prova ao dublar em tempo real.
“Sempre acho que não vou conseguir, mas o Luís Carlos me puxa e vou. Tenho uma confiança imensa nele, tanto pessoal quanto artística”, diz. As trocas com a atriz, por sua vez, fizeram com que o trabalho de sua companhia chegasse a um público mais amplo. “A Ana Paula é um farol. Ela aponta para um lado e uma multidão vai nessa direção. Ela é ainda uma visionária, responsável por um repertório muito importante no teatro brasileiro. Fiz a peça para provocar ainda mais a nossa relação artística”, diz ele.
Que a obra estreie no Teatro do Sesi, com seus 456 lugares e um histórico de filas e ingressos esgotados rapidamente, não é coincidência. Nesse espaço, onde as temporadas são sempre gratuitas e permanecem por meses ao alcance do público, o experimental e o popular já se encontraram muitas vezes.
E este é o tipo de projeto que mobiliza Ana Paula: “O teatro me ajuda muito a pensar, a ter novas ideias, a não desistir, a não ficar deprimida. Gosto de imaginar que ele acende luzes para os outros e nos diz que a vida que a gente tem é agora”. •
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A crença no palco’