Vivemos em um país em que a democracia, conquistada a duras batalhas, se arrasta em frangalhos. Uma democracia dos ricos, moldada para servir aos que ditam as regras do jogo. As liberdades democráticas que hoje temos não foram dádivas, mas frutos de lutas travadas nas ruas: a campanha das Diretas Já, o enfrentamento ao regime militar, a resistência de trabalhadores e movimentos populares. Ainda assim, o que vemos agora é um arremedo de democracia, onde instituições e setores privados se engordam com recursos públicos, mas negligenciam políticas estruturais, especialmente para setores como a cultura.

A denúncia recente, feita por um vereador de direita na Câmara Municipal de Natal contra a vereadora Brisa Bracchi (PT), ilustra esse cenário apodrecido. A acusação: destinar uma emenda parlamentar de R$ 18 mil para uma festa em um espaço impulsionado por apoiadores da parlamentar. Nada de novo sob o sol. Essa prática — de destinar recursos a espaços aliados, criando uma rede de dependência política — não é privilégio de um partido ou ideologia. É parte de um sistema em que parlamentares, sejam de direita ou de setores da esquerda acomodada, transformam emendas em moeda de troca, alimentando seus currais eleitorais.

Em Natal, mais uma vez, a direita aproveita a arena parlamentar para lançar sua caça às bruxas. Não nos surpreende: o jogo do poder é esse. Ratos farejam deslizes para disparar ataques ferozes contra setores que reivindicam a esquerda. Porém, a indignação seletiva não apaga as práticas semelhantes reproduzidas por essa mesma direita — e até por ditos setores que se reivindicam de esquerda. A questão que se impõe é: de que lado estamos quando naturalizamos a farra das emendas, essa engrenagem que transforma a política em balcão de negócios?

O parlamento não foi criado para gerir recursos, mas para legislar. Entretanto, vereadores, deputados e senadores tornaram-se gestores informais de verbas públicas, distribuindo emendas para instituições, festas, fundações, prefeituras, estados e, não raramente, para seus próprios espaços ou aliados políticos. O resultado? Um sistema onde a arte, a cultura, o esporte e outras áreas ficam reféns de migalhas distribuídas como favores. Em vez de um orçamento robusto e planejado para a cultura, temos artistas peregrinando atrás de apoios individuais, muitas vezes recebendo R$ 200 ou R$ 300 como “socorro”, e em troca, sendo obrigados a estampar o nome de parlamentares em seus cartazes.

Essa engrenagem não é só corrupta, é humilhante. A arte não é boba da corte para entreter poderosos. A cultura popular de Natal — berço de cordelistas, repentistas, músicos e artistas de rua — é um patrimônio que não deveria mendigar reconhecimento, mas receber investimentos estruturais e permanentes. A luta por um orçamento próprio para a cultura precisa voltar ao centro das reivindicações dos movimentos culturais, sob pena de continuarmos reféns do toma-lá-dá-cá.

É preciso dizer de forma contundente: não defendemos a cassação do mandato da vereadora Brisa Bracchi. Sabemos o caráter farsesco desta Câmara, sua estrutura viciada e seu viés cada vez mais à direita. Sabemos como a direita se aproveita de qualquer deslize para atacar quem ousa denunciar o sistema. Nossa solidariedade é sincera. Mas solidariedade não significa omissão diante de erros. Destinar uma emenda para um espaço vinculado ao próprio universo de apoio é, no mínimo, um tropeço ético. A esquerda que queremos não pode reproduzir as práticas que tanto critica, sob risco de se tornar cúmplice de um sistema que prometeu combater.

Vereadora Brisa Bracchi (PT) foto Divulgação

A melhor maneira de enfrentar a direita não é imitá-la, mas diferenciando-se dela. É manter as mãos limpas e a voz firme. É ter coragem de fazer autocrítica e denunciar as práticas clientelistas, mesmo quando reproduzidas por setores aliados. Não basta indignar-se quando a direita utiliza verbas públicas para financiar atos golpistas, como em janeiro de 2023. É preciso ter coerência para condenar também o uso eleitoreiro das emendas por qualquer lado.

Os artistas, produtores culturais e militantes desta cidade conhecem as dificuldades na pele: atrasos nos pagamentos de cachês, calotes históricos de órgãos como a Funcarte e a Fundação José Augusto, burocracias que desestimulam a produção independente. Enquanto isso, milhões circulam como favores pessoais, perpetuando um sistema em que políticos se tornam donos de palcos e curadores do que pode ou não existir. Isso precisa acabar.

Por isso, afirmamos: pela extinção da farra das emendas parlamentares! Que o dinheiro público seja destinado a políticas estruturais, e não a caprichos de gabinete. Que a cultura tenha um orçamento próprio, transparente e democrático, que permita aos artistas viver de sua arte sem mendigar favores. Que os setores que se dizem da esquerda sejam exemplos de coerência, e não mais uma peça nesse tabuleiro marcado pela barganha.

Nossa solidariedade à vereadora Brisa Bracchi é também um chamado à reflexão: ou rompemos com esse sistema, ou seremos engolidos por ele. A cultura de Natal merece mais do que aplausos comprados. Merece respeito, autonomia e investimento. Porque sem arte independente, não há democracia de verdade — apenas um arremedo, uma caricatura grotesca onde os poderosos seguem ditando a pauta e o povo, mais uma vez, é reduzido a espectador.

Nando Poeta é militante do PSTU, Presidente da Academia Norte-rio-grandense de Literatura de Cordel, membro do Ponto de Memória Estação do Cordel e sócio da Comissão Norte-rio-grandense do Folclore

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Last Update: 25/08/2025