Quem estudou ou estuda Maquiavel sabe que o bem e o mal são intercambiáveis. Muitas vezes aquilo que se apresenta como o bem produz o mal e outras vezes aquilo que parece uma crueldade é mais piedade do que algo apresentado como piedade. A ocorrência quase universal desse intercâmbio é praticamente diária nos acontecimentos políticos mundanos e nos negócios humanos.
Alguém minimamente informado sabe também que a principal causa formadora das desigualdades sociais no Brasil reside na estrutura tributária injusta e concentradora de renda. A regulamentação da reforma tributária deu mais um passo para reforçar e ampliar as causas da geração das desigualdades. Esse feito conseguiu unir quase todos os deputados, o governo e a oposição, Lula e os deputados do PL, o agronegócio e as esquerdas, e por aí vai. Trata-se da inclusão da isenção tributária da carne bovina e de outras proteínas animais em nome de garantir o acesso aos pobres. Essa suposta piedade aumenta a crueldade das desigualdades e beneficia os mais ricos e os grandes produtores de carne – o agronegócio, geralmente depredador.
Há praticamente uma unanimidade entre os analistas de que a inclusão da carne na isenção beneficia os mais ricos. Há também uma unanimidade entre os analistas sérios com a tese de que havia uma alternativa mais justa e equitativa para garantir o acesso ao consumo de carne aos mais pobres. Consistia na adoção do cashback, proposta inicialmente defendida pelo ministro Fernando Haddad e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. Mas a pressão avassaladora dos ruralistas, dos lobistas, dos populistas e dos eleitoreiros levou todos a sucumbir.
O cashback surgiu em 2023, no âmbito da reforma tributária. O mecanismo trata da devolução do imposto pago em determinadas compras para a população com renda mais baixa. Impostos e isenções lineares sobre produtos de consumo têm efeitos regressivos e concentradores. O cashback é adotado em vários países. Por aqui, o Rio Grande do Sul foi pioneiro na sua adoção. Os beneficiados são ou poderiam ser, por exemplo, os beneficiários do Bolsa Família e os inseridos no Cadastro Único. Existem várias formas de devolução do imposto. Uma das mais interessantes consiste em devolvê-lo imediatamente, na hora da compra, como acontece no Uruguai.
Estudos, inclusive do Banco Mundial, mostram que o cashback é mais justo e equitativo do que a isenção de produtos de cestas básicas. E quanto menos produtos da cesta básica são isentados, mais baixa será a alíquota média do imposto agregado pago por todos. A isenção da carne aumentará o IVA e o Brasil terá uma das alíquotas médias maiores do mundo, segundo cálculos preliminares. As desonerações lineares favorecem os mais ricos em todas as circunstâncias, pois eles consomem mais e usam parte menor de suas rendas para o consumo, apesar de comprarem produtos mais caros ou, no caso, consumindo carnes e cortes nobres.
O Brasil é um dos países que mais produzem e mais consomem carne no mundo. O consumo per capita está em torno de 98 quilos por ano. Estudo publicado pelo Núcleo de Extensão da USP sobre Alimentação Sustentável mostra que as famílias brasileiras que ganham até meio salário mínimo por integrante gastam 5% de sua renda com carne. As famílias que ganham acima de quatro salários mínimos por cabeça, gastam 0,3% de sua renda. As famílias mais pobres pagam, em média, 14,55 reais por quilo e aquelas de maior renda, 21,36. É uma demonstração cabal do forte impacto regressivo da isenção.
Outro estudo publicado em 2023 por pesquisadores da USP na revista Environment Development and Sustentability mostra que a carne é responsável por 86% da pegada de carbono (volume total dos gases de efeito estufa) da dieta nacional. A produção é ainda responsável por 77% da poluição dos cursos d’água e por 26% do consumo total de água. Dentre as cinco principais recomendações dos mais influentes cientistas ambientais do mundo para atenuar a catastrófica crise climática consta a redução do consumo de carne bovina.
Quer dizer: a aliança carnívora que incluiu a carne na cesta básica e isentou o produto de tributação gera dois grandes danos: aumenta as desigualdades sociais e eleva o impacto no aquecimento global. Isso prova que governo, Câmara dos Deputados, governantes, parlamentares e partidos estão mais interessados em promover seus interesses eleitorais e seus privilégios, em detrimento da sociedade, dos mais pobres e do planeta. Não por acaso, a política vive um grande desprestígio, promovido pelos próprios políticos.
Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O erro da isenção da carne’