Em seu longo Voto de 73 páginas, que julgou improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 (ADPF153), protocolada pela OAB no STF em 2008 – a qual questionou a autoanistia do regime militar a seus agentes que cometeram crimes de lesa-humanidade contra quem se opôs ao arbítrio – o ministro Eros Grau, relator da referida arguição, defendeu a anistia de 1979 como um grande acordo entre a ditadura militar e os que a ela se opunham, caracterizados por ele como “subversivos”:

“a inicial ignora o momento […] da batalha da anistia, autêntica batalha. Toda a gente que conhece nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da Lei n. 6.683/79. […] Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave […] os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em nome dos subversivos.” (Voto do Relator, pgs. 26, 57).

Mas não foi só o ministro Eros Grau que colocou à frente dos argumentos jurídicos o suposto contexto histórico. O então procurador-geral da República afirmou: “frente aos argumentos de índole estritamente técnica […] tem relevância maior o seu exame no contexto histórico em que veio à luz o dispositivo impugnado” (Parecer da PGR, 29.01.10, pg.19).

No mesmo sentido argumentou a Advocacia Geral da União (AGU): “A lei da anistia surgiu da negociação havida no Congresso Nacional com a participação da sociedade civil e do regime vigente à época, a fim de viabilizar a transição do regime democrático atual”.

Fica claro que é fundamental para um correto entendimento da anistia no Brasil o esclarecimento das verdadeiras circunstâncias em que foi aprovada no Congresso Nacional a Lei 6.683/1979. É o que me proponho a fazer, desmentindo a inverdade de que ela decorreu de um grande acordo entre a oposição e a ditadura”.

As primeiras propostas de uma anistia aos presos e perseguidos políticos pela ditadura militar surgem já em 1964, através de manifestações nesse sentido por parte de intelectuais como Carlos Heitor Cony, Alceu Amoroso Lima e o jornal Correio da Manhã. Em 1966, o Manifesto da Frente Ampla – de Jango, Juscelino e Lacerda – propôs anistia ampla. Em 1972, o grupo dos “autênticos” incluiu no programa do MDB a luta por anistia ampla e total. Em setembro de 1973, no discurso do lançamento da sua anticandidatura à presidência da República, Ulysses Guimarães defendeu o “resgate da enorme injustiça que vitimou, sem defesa, tantos brasileiros (…) e seu nome é anistia”.

Em março de 1975, a advogada Therezinha Zerbini – ex-presa política e esposa do general cassado Euryales Zerbini – criou em São Paulo o Movimento Feminino Pela Anistia e na primeira Conferência Mundial da Mulher, promovida pela ONU no México, divulgou o Manifesto da Mulher Brasileira em Favor da Anistia, reivindicando “anistia ampla e geral a todos aqueles que foram atingidos pelos atos de exceção”.

Ao retornar ao Brasil, Theresinha Zerbini ajudou a organizar diversos núcleos estaduais do MFPA e passou a colher assinaturas para esse manifesto, que em poucos dias obteve 12 mil assinaturas. O manifesto foi entregue ao general Golbery de Couto e Silva, sem qualquer resposta.

Aos poucos, a luta pela anistia espalhou-se: multiplicaram-se os comitês pela anistia no Brasil e no mundo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Conferência Nacional do Bispos Brasileiros (CNBB), se incorporaram à luta pela anistia.

Em 3 de junho de 1977, Therezinha Zerbini, em conferência na Câmara Municipal de São Paulo, alertou que a anistia não seria o resultado de qualquer “acordo” com a ditadura militar: “Partimos do princípio de que qualquer abertura democrática tem que começar obrigatoriamente por uma Anistia Ampla e Geral a todos os que foram atingidos pelos atos de exceção. […] Cabe a nós conquista-la. Ela será o primeiro passo para o retorno ao Estado de Direito.”

Em 10 de dezembro de 1977 realizou-se em São Paulo o primeiro Encontro Nacional do Movimento Feminino pela Anistia, que em sua declaração final defendeu uma “anistia política ampla […] que nenhum preso político, exilado, banido, desaparecido ou atingido pelos atos de exceção comemore no cárcere ou no exílio a data do nascimento de Jesus”.

Em 14 de fevereiro de 1978, na sede da Associação Brasileira de Imprensa, foi criado o Comitê Brasileiro Pela Anistia (CBA), presidido pelo general Peri Bevilaqua, que participou do golpe de 1964 mas, posteriormente, devido às suas críticas ao regime militar, foi afastado do Superior Tribunal Militar, pelo AI-5.

Ampla, geral e irrestrita

Em 9 de setembro de 1978, depois da formação de Comitês Pela Anistia em diversos Estados, inclusive no exterior, realizou-se em Salvador o primeiro Encontro Nacional de Movimentos pela Anistia, que aprovou a Carta de Salvador e convocou o primeiro Congresso Nacional pela Anistia. A Carta de Salvador afirmou: “A anistia deve ser AMPLA – para todos os atos de manifestação de oposição ao regime; GERAL – para todas as vítimas dos atos de exceção e IRRESTRITA – sem discriminações ou exceções.” A Carta também denunciou a chamada “lenta, gradual e segura abertura” do regime militar e as suas “reformas que nem consideram a Anistia […] representam um esforço diversionista […] para institucionalizar o arbítrio, marginalizar os setores populares e eternizar o grupo governante no poder”.

Entre 2 e 5 de novembro de 1978, realizou-se em São Paulo o primeiro Congresso Nacional pela Anistia, com cerca de 1.500 participantes, que aprovaram um Manifesto à Nação, no qual assumiram “o compromisso da transformação da luta pela anistia num amplo e estruturado movimento popular, entendendo que é da organização e da pressão popular que depende a conquista de: fim da legislação repressiva, inclusive da lei de segurança nacional e da insegurança dos brasileiros; desmantelamento do aparelho de repressão política e fim da tortura; liberdade de organização e manifestação; ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA”.

Em 15 de novembro de 1978, as eleições para o Congresso Nacional, realizadas sob o tacão do Pacote de abril de 77 – que criou 22 “senadores biônicos”, ampliou o número de deputados nos estados menos populosos (dominados pela Arena) e cancelou as eleições de governadores – asseguraram para a ditadura a maioria nas duas Casas, apesar do MDB ter tido 18,5 milhões de votos e a Arena apenas 13,6 milhões. Ficava claro que a ditadura militar em declínio não estava disposta a “uma transição conciliada, suave”.

A partir de então, a campanha pela anistia tomou maior impulso e amplitude, sempre defendendo uma “anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos políticos” e “não-recíproca”. As manifestações públicas se multiplicaram, com destaque para o ato que ocorreu em agosto de 1979, no Rio de Janeiro, com a participação de mais de 20 mil pessoas. Todas essas manifestações eram reprimidas com violência pela ditadura militar. Nesse contexto, os presos políticos do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte e Ceará iniciaram uma greve de fome exigindo anistia, o que repercutiu em todo o país. Conhecidos artistas passaram a levantar a sua voz pela anistia.

Inicialmente contrário a qualquer anistia, foi só com o crescimento da pressão popular que o general João Baptista Figueiredo decidiu enviar ao Congresso, em 27 de junho de 1979, uma proposta de anistia limitada e recíproca. O projeto foi remetido à Comissão Mista presidida pelo senador Teotônio Vilela – oriundo da Arena, mas que havia aderido ao MDB –, defensor da anistia ampla e irrestrita. Junto com outros parlamentares, ele percorreu as prisões políticas de todo o país, denunciando as condições precárias em que estavam os presos políticos.

Segundo o historiador Nelson Werneck Sodré:

“na verdade, a anistia proposta pelo poder […] era de uma falsidade transparente […] era uma mistificação – a anistia não era anistia. […] ela visava os indivíduos, mas não as instituições. Estas permaneciam intactas, com a legislação de exceção em pleno vigor […]. E ia mais longe, em um toque de ironia trágica: colocava como beneficiários da anistia os torturadores, isto é, aqueles que haviam a serviço do regime, cometido as maiores torpezas que a história da nossa gente jamais registrou. […] a legislação fascista, essência do regime, continuaria em vigor. Isto é, se os anistiados voltassem a cometer os “crimes” pelos quais haviam sido condenados, a legislação os puniria. […] impondo a sua aceitação sem retoques e sem emendas, negando-se a negociar qualquer alteração, o regime reservava-se […] um meio de desmentir a acusação que mais o feria, que era a de violentar os direitos dos cidadãos.” (Nelson Werneck Sodré. Vida e Morte da ditadura, Petrópolis/RJ, 1984, Vozes, pgs.123-124).

O historiador Hélio Silva complementa:

“Uma das primeiras iniciativas do Governo [Figueiredo] foi a de encampar a campanha da anistia, ampla, geral e irrestrita que a oposição tomara como verdadeiro clamor nacional. O Governo enxertou tais dispositivos que perdeu aquele caráter de amplitude. […] A anistia obedeceu, portanto, a um critério destinado a manter a sociedade brasileira dividida, tomando como referência o movimento de março de 64, entre vencedores e vencidos.” (Hélio Silva. O Poder Militar, Porto Alegre, LPM, 1984, p. 539).

E o então Conselheiro da OAB, Sepúlveda Pertence, fulmina:

“O exame global do projeto desvela de imediato o seu pecado substancial: é a sua frontal incompatibilidade com um dado elementar do próprio conceito de anistia, ou seja, o seu caráter objetivo. Em outras palavras: o que o Governo está propondo, com o nome de anistia, tem antes o espírito de um indulto coletivo que o de uma verdadeira anistia. Esta distorção básica está subjacente aos pontos mais criticáveis do projeto: da odiosa e arbitrária discriminação dirigida exclusivamente aos já condenados por determinados crimes políticos (art. 1º, § 2º), ao condicionamento do retorno ou reversão dos servidores públicos à existência de vaga e ao interesse da Administração (art. 3º), e à exclusão desse benefício ’quando o afastamento tiver sido motivado por improbidade do servidor’ (art. 3º, § 4º).”

O governo ditatorial negou-se a negociar com a oposição e a aceitar suas propostas de alteração, ameaçando com o veto total, caso ele fosse modificado. Mas, isso não intimidou a oposição, que elaborou e protocolou emendas ao projeto original;

A historiadora Janaína de Almeida Teles, no seu texto “As disputas pela interpretação da Lei da Anistia de 1979”, relata:

“As discussões entre o MDB e os CBAs evoluíram para um acordo de apoio à Emenda nº.7 do projeto de lei de anistia do governo, assinada pelos deputados Ulysses Guimarães (presidente do MDB), Freitas Nobre (líder da minoria na Câmara) e pelo senador Paulo Brossard (líder da minoria no Senado), apresentada em 9 de agosto de 1979. Dalmo Dallari, jurista da Comissão de Justiça e Paz/SP, e José Paulo Sepúlveda Pertence, então vice-presidente do Conselho Federal OAB, participaram da sua redação. Seus principais aspectos eram os seguintes: rejeição da reciprocidade na concessão da anistia (art.1º, §2º), propunha a anistia aos perseguidos políticos; a instauração de inquérito para apurar as circunstâncias dos desaparecimentos políticos, (art.15), mas propunha a concessão de declaração de morte presumida para os desaparecidos políticos (art.16), sem investigação prévia […].A rejeição à concessão de anistia aos torturadores ficou explicitada na parte inicial do texto, ao detalhar os beneficiários da anistia (art. 1º.), mas não deixou margem a dúvidas no parágrafo 2º, conforme o texto: ‘Excetuam-se dos benefícios da anistia os atos de sevícia ou de tortura, de que tenha ou não resultado morte, praticados contra presos políticos.’ […] Denunciava e combatia também o caráter discriminatório da proposta do governo, que determinava como excluídos do alcance da anistia os condenados pela prática de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. (§ 2º do art. 1°)”.

Proposta alternativa

O MDB, ciente da dificuldade de aprovar a sua emenda, devido aos 22 “senadores biônicos”, propôs como alternativa, após a provável derrota da sua proposta, o apoio à emenda do deputado Djalma Marinho (Arena-RN), que eliminava os dois parágrafos do artigo 1°, que tipificavam os “crimes conexos” e excluíam da anistia os condenados por “terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.

A votação conjunta das duas Casas ficou para 22 de agosto. No dia anterior, um ato público a favor da anistia, na rampa do Congresso Nacional, foi dissolvido com bombas de gás lacrimogêneo e, na madrugada do dia 22, 800 soldados à paisana lotaram as galerias do plenário, para bloquear a presença dos defensores da anistia. Só à tarde, depois de muita pressão, estes conseguiram ocupar as galerias.

Na sessão de votação, que durou nove horas, o pedido de destaque para a proposta do MDB foi derrotado por votos 209 votos contra 194. A seguir, a emenda Djalma Marinho teve o seu destaque aprovado, mas foi derrotada por 206 votos contra 201.

Como se vê, não houve qualquer acordo entre a ditadura e a oposição, mas a imposição do projeto da ditadura militar, através de uma maioria governista, em um Congresso mutilado pelo pacote de abril e com 22 “senadores biônicos” que não tinham qualquer legitimidade democrática.

Na votação final, o projeto de anistia da ditadura foi aprovado pelo voto dos líderes dos dois partidos, não sendo permitida a votação nominal. O MDB votou “sim”, por entender que, mesmo limitada, a anistia era um avanço, mas 29 deputados e 12 senadores do MDB declararam o seu voto contrário, denunciando que “anistia-se irrestritamente os torturadores e parcialmente os opositores do regime […] nos manifestamos contra o substitutivo ao projeto de ‘anistia’ do governo, recusando nosso voto para sua legitimação”.

A verdade sobre a anistia

Os fatos narrados mostram que: 1) a luta em defesa de uma anistia ampla, geral e irrestrita diz respeito unicamente aos perseguidos pelo regime militar, nunca aos seus agentes que sequestraram, torturaram e assassinaram os que lutavam contra a ditadura; 2) a anistia de 1979 não foi resultado de qualquer acordo da oposição com o regime militar, mas uma lei imposta por um Congresso controlado pelos generais, emasculado pelo Pacote de Abril e deslegitimado por 22 “senadores biônicos”.

A anistia de 1979 – que com os limites impostos pela ditadura foi promulgada em 28 de agosto de 1979 – ao referir-se a “crimes conexos”, não teve a coragem de anistiar explicitamente os crimes de tortura, sequestro e assassinato, cometidos pelos agentes da ditadura. Essa foi a interpretação que prevaleceu durante o regime militar, mas que devia ter sido descartada após a redemocratização do país. Infelizmente, essa interpretação foi endossada no voto do ministro Eros Grau e acolhida por seus pares. Para isso, baseou-se essencialmente no argumento de que a Anistia de 1979 foi um grande entendimento entre a oposição e a ditadura, o que, como vimos, não ocorreu.

É hora, portanto, do STF rever essa interpretação.

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Last Update: 18/06/2025