A extrema-direita e as Câmaras Municipais
por José Eduardo Campos Faria
Após terem sido empossados no primeiro dia do ano, os vereadores eleitos pela extrema-direita bolsonarista em várias capitais do país anunciaram quais serão suas prioridades no exercício do mandato. Alguns disseram que combaterão o comunismo. Outros alegaram que defenderão a família e, com base numa visão homofóbica de sociedade, se oporão a toda e qualquer ideia e iniciativa do movimento LGBTQIA+. Houve também quem prometesse apresentar projetos de lei definindo as cores dos uniformes das escolas de 1° grau – azul para meninos, rosa e para meninas. Houve ainda quem, inspirando-se na barbárie moral trumpista, tenha prometido proibir mulheres trans de entrar em banheiros femininos; pessoas trans de participarem de competições esportivas em categorias que não correspondam às de seu sexo de nascimento; e hospitais e clínicas de realizar tratamentos hormonais e cirurgias de designação sexual em menores de 18 anos.
Esses projetos podem primar pela ignorância reacionária, por orientações doutrinárias indigentes e autoritárias, por guerras de cultura, por discursos de ódio e pela absoluta falta de embasamento constitucional e legal, além da disposição oportunista de não medir esforços para tentar criar a qualquer preço situações de fato que assegurem notícias nos meios de comunicação e nas plataformas digitais. Contudo, iniciativas como essas não são novas. Algumas apareceram na Itália durante o regime fascista, na primeira metade do século 20. E, na segunda metade, propiciaram manifestações caricatas em várias outras regiões – inclusive na América Latina. Uma delas, por exemplo, ocorreu por volta de 1990 na cidade de Iquitos, que é a capital do distrito de Loredo, na região amazônica peruana.
Candidato a presidente da República, o escritor Mario Vargas Llosa a escolheu como local para o primeiro comício de sua campanha. Apesar de defensor do liberalismo, foi considerado ateu e esquerdista pelos reacionários da região, que o acusaram pelos jornais, revistas, rádio e pela televisão de ter difamado a “mulher de Loreto” em seu romance Pantaleão e as visitadoras, descrevendo as picantes proezas sexuais das prostitutas que atuavam na região. O que era um trabalho imaginativo e literário foi tratado como fato. Mães com tarjas pretas fizeram passeatas nas ruas de Iquitos. Famílias rezaram terços pela conversão de Llosa ao catolicismo. Beatas lhe ofereceram água de Lurdes. Grávidas foram estimuladas a deitar-se na pista de pouso do aeroporto da cidade para impedir a aterrisagem do avião que trazia o candidato. Panfletos foram distribuídos acusando-o de ser um “lascivo caluniador” que pretendia “conspurcar o solo loretano”. A partir daí, no resto da campanha Llosa passou a ser classificado como “ateu, pornógrafo, pervertido e incestuoso”, o que o levou à derrota. “Quando nos deixamos arrastar por essa polêmica, tínhamos tudo para perder, só conseguimos que minha imagem ficasse empobrecida pela politicagem miúda de uma guerra suja” (mais detalhes podem ser encontrados em seu livro de memórias de Llosa, Peixe na Água, lançado em 1993).
Várias são as questões que podem ser suscitadas a partir das bobagens, das farsas, dos horrores e das aleivosias eleiçoeiras da extrema-direita fascista, como ocorreu na Itália, entre 1919 e 1945, e no Peru, no início dos anos de 1990. Uma delas é de natureza jurídica. Diz respeito ao alcance das competências de uma Câmara Municipal, em matéria de iniciativa legislativa no âmbito de um país que consagra o federalismo. Por isso, se exorbitarem e tentarem ir além de suas competências, as bancadas parlamentares municipais da extrema-direita abrirão caminho para enormes discussões jurídicas, aumentando ainda mais o número de arguições de inconstitucionalidade que o Supremo Tribunal Federal vem sendo obrigado a julgar desde a ascensão do bolsonarismo ao poder, em 2019.
Em matéria de interpretação de textos legais e iniciativas legislativas, por exemplo, há um sem número de correntes jurídicas a respeito da interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais. De saída, nas aulas de introdução ao direito do 1° ano de graduação, os cursos jurídicos ensinam que a interpretação de uma norma pode ser secundum legem ou, então, praeter legem. O primeiro modo de interpretação é mais restrito e é preso ao texto da lei. O segundo modo de interpretação é mais expansivo e fundamentado não em regras com “textura fechada”, mas em princípios jurídicos abertos e indeterminados. Já no 4° ano, os alunos aprendem que existem juristas e magistrados que entendem que a vida do direito, em vez de ser lógica, é um exercício de experimentação – para saber o que o direito é preciso saber o que ele foi no passado e o que ele tem de tendência a ser no futuro. Há, também, quem conceba o direito como um sistema lógico-formal de normas, motivo pelo qual elas poderiam ser vistas como um simples conjunto de axiomas e corolários. Igualmente, há quem justifique a interpretação de uma norma constitucional apenas por suas consequências, e quem, em sentido oposto, despreze essas consequências, o que abre caminho para decisões fundadas com base em silogismos, sem conexão com a realidade social, política e econômica. E existe ainda quem alegue que os casos mais difíceis exigem um ponderação, que vai muito além de uma interpretação lógico-formal, enquanto os casos mais fáceis podem ser resolvidos com base na jurisprudência.
Esse debate é atual e muito importante, não há dúvida. Contudo, discussões doutrinárias e tecnicalidades hermenêuticas à parte, o fato é que a demarcação divisória entre o direito e a política jamais é clara e, muito menos, fixa. Por isso, no cotidiano dos tribunais e das cortes constitucionais a interpretação da Constituição nunca é uma atividade meramente técnica e mecânica, na qual as vontades e as convicções dos magistrados não fariam diferença. Pelo contrário, a valoração dos fatos e a definição de sentido das palavras de cada norma constitucional ou infraconstitucional sempre envolvem algum grau de subjetividade, o que acaba abrindo caminho para a judicialização da política e para a politização dos tribunais, abrindo caminho assim para a uma progressiva corrosão da legitimidade do Poder Judiciário. Prova desse risco está no discurso monocórdico da extrema-direita, alegando que o país estaria hoje sob uma ditadura do Supremo Tribunal Federal.
É justamente por isso que a Justiça brasileira precisará tomar cuidado quando tiver de julgar arguições de inconstitucionalidade de projetos de lei que ferem liberdades públicas e direitos fundamentais de autoria de parlamentares da extrema-direita e aprovados pelas Câmaras Municipais. Seus magistrados não podem ser condescendentes ou dúbios. Se não exigirem que esses projetos de lei se conformem rigorosamente ao ordenamento constitucional, deixando-se levar pelos argumentos de ocasião, pelas provocações e pelas artimanhas eleiçoeiras que certamente serão feitas por vereadores da extrema-direita interessados em criar um “novo normal”, alimentando suas redes horizontais de informação com vista às eleições de 2026, o jogo democrático será progressivamente enfraquecido, como apontou Vargas Llosa ao descrever o tratamento que seus opositores lhe deram quando chegou à cidade de Iquitos para fazer seu primeiro comício eleitoral.
Como dizia Max Weber, um sociólogo fundamental para a formação dos operadores jurídicos, os problemas e as angústias surgidos com a emergência da modernidade levaram o homem moderno a uma busca obstinada por previsibilidade e por certeza, valorizando um ordenamento jurídico racional. Esse é o papel do direito positivo, a começar pela Constituição: assegurar as expectativas dos cidadãos, oferecendo-lhes garantias contra a arbitrariedade e abusos, por um lado; e zelando pelas regras do jogo, por outro, evitando o que Vargas Llosa chamou de guerras sujas e propiciando assim a conversão de paixões políticas em alternativas programáticas submetidas a um jogo político limpo.
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José Eduardo Campos Faria, professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP
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