A pernambucana Ana Luiza mora há três anos na Ocupação 8 de Março, no bairro de Boa Viagem, no Recife. Sem trabalho fixo, a diarista não conseguiu manter o pagamento do aluguel durante a pandemia e acabou despejada. Passou a viver na rua ou dormindo na casa de amigos, pois até o custo de um barraco tornou-se impraticável. “Uma mulher sofre todo tipo de discriminação na hora de buscar emprego”, lamenta.
Em setembro de 2021, ela estava entre as centenas de trabalhadores que ocuparam o terreno desabitado há anos, mas com um dos metros quadrados mais caros da cidade. Atualmente, a área abriga cerca de 2 mil pessoas, entre elas 250 crianças. As histórias de vidas se entrelaçam num enredo de imensas dificuldades e poucas perspectivas. “Minha esperança é ter uma moradia digna, poder dormir sob o meu teto e descansar em uma casa de verdade.”
No Brasil, o número de pessoas afetadas por despejos ou remoções forçadas aumentou de 898,9 mil, em outubro de 2022, para 1,5 milhão em julho de 2024, alta de quase 70% no período, revela o levantamento inédito da Campanha Despejo Zero, movimento nacional composto de 175 organizações que atuam, desde 2020, na luta pelo direito à moradia na cidade e no campo. Esse universo de desamparados corresponde a 333 mil famílias ameaçadas, 42 mil removidas e 79 mil vivendo com ordens de despejo suspensas no Judiciário. A pesquisa não considera a população em situação de rua nem pessoas atingidas por desastres socioambientais.
O relatório aponta ainda que a crise do sistema habitacional no Brasil tem classe, gênero, raça e região. Dos afetados por despejos e remoções forçadas, 66,3% se autodeclaram pretos e pardos, 62,6% são mulheres, 74,5% ganham até dois salários mínimos e a maioria vive nas regiões Norte e Nordeste. O contingente inclui ainda 265 mil crianças e 260 mil idosos.
“Estamos diante de uma crise habitacional sem precedentes. A Campanha Despejo Zero vem denunciando o risco de convulsão social, caso esse 1,5 milhão de pessoas perca seus lares. Esse contingente se somaria a outros 6,2 milhões de famílias que precisam morar de favor ou escolher entre comer ou pagar aluguel, a dezenas de milhares de pessoas em situação de rua, sem falar de quem perdeu sua casa em um desastre”, diz a arquiteta e urbanista Maria José, doutora em Desenvolvimento Urbano pela UFPE e gerente de Incidência Política da Habitat Brasil.
A Campanha Despejo Zero foi articulada em 2020, no contexto da pandemia. “Havia ali uma grande contradição. Enquanto os cientistas pediam à população para ficar em casa e se proteger do vírus, milhares de pessoas eram expulsas de suas moradias. Como justificar essa atitude? Onde iriam morar?”, questiona a especialista. A crise sanitária e o desemprego impactaram duramente as famílias, que perderam a capacidade de pagar aluguel. Esse quadro ajuda a explicar a explosão do número de ocupações de moradias, além do aumento exponencial de pessoas em situação de rua. Entre março de 2020 e agosto de 2021, mais de 19 mil famílias foram removidas de suas casas e mais de 93 mil se encontravam ameaçadas por procedimentos judiciais e administrativos de despejo.
O número cresceu quase 70% desde outubro de 2022, alerta a Campanha Despejo Zero
Maria José identifica dois movimentos importantes para proteger a população ameaçada de despejo desde então. O primeiro, que ela apelidou de “redução de danos”, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender despejos coletivos em meio à pandemia, durante o julgamento da ADPF 828. “As pessoas eram retiradas sem que houvesse um ambiente seguro para abrigá-las. Ou seja, elas só trocavam de local, continuavam vivendo em ocupações clandestinas.” Outra medida importante, destaca, foi a Lei 14.216/2021, que suspendeu remoções em imóveis urbanos.
O segundo movimento, a partir do governo Lula, trouxe avanços mais significativos, com a retomada do programa “Minha Casa, Minha Vida”, que amplia o acesso à moradia digna e promove a regularização fundiária de assentamentos urbanos. Mas o passivo é enorme. “Um estudo da Fundação João Pinheiro mostra que, no Brasil, mais de 26 milhões de pessoas vivem em habitações precárias”, informa Maria José. “Trata-se de um problema complexo, que deve envolver as pessoas diretamente atingidas nas discussões, sobretudo a população feminina, preta, pobre e periférica.”
O maior desafio será enfrentar o lobby do setor imobiliário em um Congresso majoritariamente conservador ou reacionário. Os parlamentares tendem a privilegiar o direito à propriedade, em detrimento do direito à moradia, algo que também se nota na maior parte das decisões judiciais. Em muitos casos, famílias são despejadas e os imóveis permanecem vazios, mas com potencial de gerar lucros futuros. A especulação é um dos principais entraves, lamenta a gerente de Incidência Política da Habitat Brasil.
Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base de um Projeto de Lei que pune quem participar de ocupações de terras ou imóveis. Eles perderiam o direito a acessar benefícios e programas sociais da União. Em São Paulo, a Assembleia Legislativa aprovou iniciativa semelhante, e flagrantemente inconstitucional, avalia o advogado João Pedro, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e colunista desta publicação. “A proposição legislativa sobrepõe o direito à propriedade aos demais direitos das pessoas em situação de hipossuficiência. Entretanto, o direito à propriedade, assim como qualquer outro, não é absoluto nem pode se sobrepor a outros direitos”, escreveu, em recente artigo publicado em CartaCapital. “Não se pode, portanto, tolher o acesso aos programas públicos destinados aos hipossuficientes em nome da prevalência do direito à propriedade.” •
Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida na lona’